Mushuc Runa representa cooperativismo e orgulho indígena no futebol

O sorteio da fase de grupos da Copa Sul-Americana, realizado em 17 de março, colocou o Cruzeiro no Grupo E. Mesma chave, portanto, do Mushuc Runa, uma jovem equipe equatoriana que faz apenas sua terceira participação em um torneio continental.

Sim, você está no blog da Coonecta e não em um portal esportivo. Essa história chamou nossa atenção e merece ser contada aqui porque vai muito além das quatro linhas.

O Mushuc Runa foi fundado em 2003 por uma cooperativa de crédito, leva seu logotipo na camisa e representa a causa cooperativista com orgulho. Além disso, simboliza um grito pela liberdade e valorização da cultura indígena. Questões relativas à sociedade equatoriana, mas que podem ser identificadas em toda a América do Sul.

Futuro rival do Cruzeiro, clube cooperativo, representação indígena, azarão dentro das quatro linhas… São muitas as formas de definir o Mushuc Runa. Conheça a história do clube equatoriano do cooperativismo ao futebol continental.

O primeiro jogo contra um time brasileiro

Para um clube que faz parte da “Geração Z” do futebol, qualquer duelo internacional é tratado como grandioso. Afinal, o Mushuc Runa só disputou uma partida oficial fora do solo equatoriano em sua história – contra a Unión Española, do Chile, em 2019. Seis anos mais tarde, a equipe equatoriana viverá mais experiências no exterior do que nunca, incluindo a primeira viagem ao Brasil.

O Mushuc Runa enfrentará o Cruzeiro em duas ocasiões nos próximos meses. As equipes estão no Grupo E da Copa Sul-Americana, que também conta com Palestino (Chile) e Unión de Santa Fe (Argentina). Os confrontos entre equatorianos e brasileiros ocorrerão em 9 de abril, no Mineirão, em Belo Horizonte, e em 7 de maio, no Estádio Olímpico de Riobamba.

Daqui menos de um mês, poderá-se dizer que o Cruzeiro é o maior adversário já enfrentado pelo Mushuc Runa. O time mineiro é bicampeão da Copa Libertadores – nenhuma equipe do Equador conquistou o principal torneio do continente mais de uma vez – e vem de vice-campeonato na última edição da Sul-Americana. O elenco atual da Raposa conta com nomes expressivos no futebol continental, como o goleiro Cássio e os atacantes Gabigol e Dudu.

Os craques do Cruzeiro, no entanto, não entrarão em campo na cidade natal do adversário. O Estádio Mushuc Runa Cooperativa de Ahorro y Crédito, localizado em Ambato, possui capacidade de público inferior às 10 mil pessoas exigidas pelo regulamento da CONMEBOL (Confederação Sul-Americana de Futebol). Além disso, está sem alvará devido a normas técnicas de construção e não recebe partidas desde maio de 2024. Dessa forma, Mushuc Runa x Cruzeiro será em Riobamba, a cerca de 60km de Ambato.

A partida no Mineirão, a primeira dos equatorianos como visitantes nesta Sul-Americana, marcará a segunda viagem internacional da história do Mushuc Runa. Entrar em campo em um estádio que já recebeu partidas de Copa do Mundo, contra um dos grandes clubes do continente, será um momento histórico.

Mushuc Runa e Cruzeiro: histórias unidas por um ídolo

Juan Pablo Sorín utilizando poncho símbolo do Mushuc Runa. Crédito: jpsorin6/X

Com apenas 23 anos de história, sendo somente 14 em divisões profissionais do futebol equatoriano, ainda não dá para dizer que um craque reconhecido internacionalmente vestiu a camisa do Mushuc Runa. A única exceção, entretanto, fica a cargo de um atleta que escolheu representar a equipe em um amistoso. Esse jogador é Juan Pablo Sorín, argentino que deixou seu nome marcado no Cruzeiro.

O lateral esquerdo soma três passagens pelo Cruzeiro entre 2000 e 2009, totalizando 120 jogos, 18 gols e cinco títulos. Por seu país, figura entre os 15 atletas que mais representaram a seleção argentina, marcando 12 vezes pela Albiceleste – segunda maior marca para um defensor. Aposentado do futebol profissional desde 2009, Sorín “despendurou” as chuteiras dez anos depois, justamente para entrar em campo vestindo a camisa do Mushuc Runa.

A conexão entre Sorín e Mushuc Runa começou em 2018, quando o ex-atleta se declarou um simpatizante da equipe devido ao seu DNA cooperativista e de valorização indígena. O clube aproveitou a oportunidade de se aproximar do torcedor célebre e o convidou para as festividades na abertura da temporada 2019, incluindo amistoso contra o Emelec. O argentino viajou a Ambato, foi recebido com festa e entrou em campo vestindo camisa personalizada.

Por que o Mushuc Runa encantou Juan Pablo Sorín e pode conquistar muita gente continente afora? Conheça mais sobre o time de futebol que tem o cooperativismo e a valorização dos povos indígenas em sua identidade.

Raízes indígenas e cooperativas do Mushuc Runa

A trajetória do Mushuc Runa, da sua fundação à primeira vitória no cenário continental, é como nenhuma outra no futebol mundial. Acha que estamos exagerando? Pois vamos te mostrar porque este clube simboliza mais do que seus resultados esportivos.

Tudo começa seis anos antes da fundação do clube. Um grupo de indígenas Chibuleos da província de Tungurahua decidiu fundar a Mushuc Runa Cooperativa de Ahorro y Crédito, uma cooperativa com o intuito de suprir necessidades de uma camada marginalizada da população. 

“Sentíamo-nos discriminados em tudo. Por sermos indígenas, nem um crédito bancário nos era autorizado. Só vivíamos bem dentro da nossa comunidade” disse Andrés Usulle, que futuramente viria a ser dirigente da instituição esportiva, em entrevista ao site Maisfutebol.

“Mushuc Runa” significa “homem novo” no idioma quíchua e simboliza um grito de liberdade. O propósito da cooperativa era estimular a integração da população indígena à economia equatoriana, formando pessoas prósperas no aspecto financeiro e carregadas de valores ancestrais. A associação, que foi fundada por 38 cooperados, obteve sucesso e hoje possui mais de 32 escritórios no país.

Foi a partir desse desejo de representação indígena em todas as atividades sociais que surgiu a ambição de criar um clube de futebol, o esporte mais popular do Equador. A cooperativa fundou, em 2 de janeiro de 2003, o Mushuc Runa Sporting Club. Iniciando sua trajetória esportiva em nível amador, o clube rapidamente se consolidou dentro e fora das quatro linhas.

Representatividade por um povo

O Mushuc Runa se autointitula o “orgulho indígena do futebol equatoriano”, e tal postura se justifica. A bandeira de representatividade vai além das palavras e, desde a fundação, marca a história do clube.

Inicialmente, a equipe esportiva contava somente com jogadores e técnicos de origem indígena. O requisito foi abandonado à medida que as exigências do futebol profissional aumentaram, mas o clube encontrou outras formas de exaltar sua ancestralidade.

O poncho, vestuário típico do grupo Chibuleo, é utilizado até hoje como um símbolo do Mushuc Runa. Além disso, o escudo do clube é justamente o ícone de uma pessoa trajando a vestimenta. Os dirigentes da equipe, como o presidente vitalício Luis Alfonso Chango, e até mesmo jogadores utilizam o traje em ocasiões especiais, reforçando a identidade de seu povo.

A ascensão esportiva do Mushuc Runa

Assim como no mundo dos negócios, é impossível alcançar sucesso da noite para o dia no futebol profissional. Em seus primeiros anos, o Mushuc Runa disputou torneios amadores na província de Tungurahua. A equipe subiu de nível em 2009, chegando à Segunda Categoria do Equador – torneio semiprofissional equivalente à terceira divisão nacional.

Após três anos de tentativas, o Mushuc Runa conquistou o tão sonhado acesso à Série B em 2011, alcançando oficialmente o status de clube profissional – para nunca mais perder. O Ponchito encontrou sucesso no novo desafio, afinal. Com apenas dois anos de experiência, sagrou-se vice-campeão em 2013 e ascendeu à divisão de elite do futebol equatoriano, sendo o primeiro clube de origem indígena a alcançar tal feito.

A equipe cooperativa conviveu com as dificuldades naturais para um time recém-promovido à elite, como o orçamento inferior aos concorrentes e a falta de experiência. Após três anos na metade de baixo da classificação, o Mushuc Runa acabou sendo rebaixado para a Série B em 2016. A queda, porém, acabou sendo pano de fundo para um dos anos mais especiais da história do clube.

Estádio Cooperativa de Ahorro y Crédito Mushuc Runa. Crédito: Sdavidortizo/Wikimedia Commons

Inauguração do estádio próprio, primeiro título nacional e classificação inédita a um torneio continental. Tudo isso aconteceu em 2018. A conquista da Série B ocorreu justamente no novo Estádio Mushuc Runa Cooperativa de Ahorro y Crédito, um projeto concretizado após sete anos de construção. Indícios de que a equipe de futebol iniciava uma nova página em sua história.

Orgulho indígena chega a níveis continentais

Além do acesso à primeira divisão – da qual o Mushuc Runa não saiu desde então –, o título também valeu ao Ponchito a oportunidade de disputar uma repescagem por vaga na Copa Sul-Americana de 2019. Nesse contexto, o clube cooperativo aproveitou o embalo, venceu e garantiu a primeira participação em uma competição internacional na sua história.

O adversário neste momento marcante foi a Unión Española, do Chile. Após dois empates, a equipe acabou derrotada nos pênaltis, deixando a Sul-Americana na primeira fase. A nova chance em cenário continental veio três anos mais tarde, em 2022. Dessa vez sem deixar o Equador – a LDU, de Quito, foi a rival –, o Mushuc Runa novamente se despediu precocemente da competição, com uma derrota e um empate.

O sonho de enfim vencer uma partida em competição continental se materializou na terceira participação, neste ano. O Mushuc Runa bateu o Orense, também do Equador, por 2 a 1, assegurando uma vaga na fase de grupos.

Além da clara ascensão esportiva, a participação na fase de grupos da Sul-Americana representa uma oportunidade para espalhar ideais cooperativos pelo continente. Viajar a três países, mostrar sua história e a identidade dos Chibuleos será uma importante oportunidade para demonstrar o propósito do Mushuc Runa e valorizar a força indígena.

Conclusão: futebol e cooperativismo combinam

O Mushuc Runa é um importante exemplo de como ideais cooperativistas podem agregar ao futebol, formando um clube com propósito, identidade e preocupação com sua comunidade – assim como são as cooperativas.

O clube indígena equatoriano é apenas um exemplo de como a combinação entre futebol e cooperativismo pode render frutos dentro e fora das quatro linhas. Confira neste artigo da Coonecta como essa relação pode fortalecer as raízes do esporte.

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