Uberização do trabalho: o que é e quais suas consequências

Apesar de ter surgido há alguns anos, o termo uberização do trabalho continua mais atual do que nunca. Na era da transformação digital, com avanços tecnológicos acelerados e o surgimento de novas ferramentas de trabalho, as relações trabalhistas também estão se modificando profundamente. 

Mas a pergunta que fica é: quais são as consequências dessas mudanças? A mais conhecida sem dúvida é a precarização das condições de trabalho, visto que no trabalho “uberizado” o trabalhador não possui vínculo empregatício com as plataformas.

Para entender melhor sobre o assunto, acompanhe os próximos tópicos e descubra o modelo de negócio que está por trás da chamada uberização do trabalho, em que momento esse termo surgiu no Brasil, quais suas características e principais consequências. Boa leitura!

Uberização do trabalho: o que significa

A uberização do trabalho é um novo modelo de trabalho criado a partir de plataformas digitais, como Uber e iFood. Apesar de prometer flexibilidade, autonomia e ganhos financeiros, as plataformas geram precarização dos trabalhadores, que não têm direitos trabalhistas e acesso a seguros, convênios e proteção aos riscos associados à profissão, como acidentes, já que não há vínculo empregatício. 

Exemplo disso são os motoristas de aplicativos, que prestam serviços para determinadas plataformas, mas sem que haja uma regulamentação efetiva e que garanta os seus direitos trabalhistas.

Esse modelo de trabalho é defendido por algumas empresas, especialmente as de tecnologia. O argumento é que ele oferece mais flexibilidade para ambas as partes. Nesse contexto, o profissional seria “o seu próprio chefe” e responsável pelo gerenciamento do seu tempo (ou seja, ele é quem define quantas horas irá trabalhar, qual o período e os dias de folga). 

Origens da uberização do trabalho

Apesar de o termo ter sido “emprestado” de uma das plataformas mais famosas, a uberização do trabalho não se restringe apenas aos motoristas de aplicativos e nem surgiu com o Uber. 

Na verdade, a uberização do trabalho surgiu com o crescimento do modelo de negócio das plataformas digitais. As plataformas podem ser definidas como orquestradores de interações entre produtores e consumidores e, portanto, têm três características marcantes:

  1. Os prestadores dos serviços intermediados pela plataforma são terceirizados.
  2. Os estoques das plataformas são totalmente ou majoritariamente de terceiros.
  3. As plataformas permitem que facilmente qualquer prestador de serviço com requisitos mínimos preste serviço na plataforma.

Hoje, diversas empresas de tecnologia seguem esse modelo. Redes sociais como Facebook, Instagram e Twitter são plataformas. Empresas que atuam no varejo, como Mercado Livre, Amazon e Alibaba também, assim como os aplicativos de entregas Rappi, Ifood e semelhantes.

Quando surgiu o termo uberização do trabalho no Brasil? 

O termo uberização do trabalho, como você já deve imaginar, faz referência ao modelo de negócio da Uber, que é uma plataforma que reúne motoristas autônomos e os conecta com passageiros em busca de um meio de transporte. Assim, o aplicativo retém uma parte do lucro desse motorista e repassa o restante ao prestador de serviço.  

No entanto, a relação de trabalho entre a Uber e os motoristas parceiros não segue as condições previstas pelo regime CLT. O conceito de prestação de serviço adotado pela empresa propõe uma relação mais informal e por demanda com os motoristas cadastrados na plataforma.

Contudo, o que para as empresas pode ser um benefício, para os trabalhadores representa a perda de direitos trabalhistas e condições mínimas de trabalho, como uma remuneração adequada e jornada de trabalho mais justa.  

No Brasil, para ser mais específico, o termo surgiu junto à chegada da empresa Uber, em 2014, mas o tema só começou a ganhar força entre 2017 e 2018, enquanto o país atravessava uma crise econômica e os empregos informais só aumentavam. Consequentemente, a mídia passou a dar mais notoriedade às questões relacionadas à precarização do trabalho na era digital.

Características da uberização do trabalho

Quando falamos sobre uberização do trabalho, ou até mesmo sobre a modalidade a qual esse termo faz referência, logo associamos ao trabalho informal, uma das principais características desse modelo de negócio.

De acordo com os dados divulgados pelo IBGE, o número de desempregados no primeiro semestre de 2022 já representava cerca de 12 milhões de pessoas. Esse cenário contribui para o aumento dos empregos informais, que acaba se tornando a principal fonte de renda dessa parcela da população.

Isso faz com que cada vez mais pessoas busquem serviços com alta demanda, como é o caso dos aplicativos de entregas e transportes, e se submetam às condições propostas pela empresa parceira. Dessa forma, a precificação do trabalho desse profissional fica a cargo da plataforma e é extremamente volátil, outra característica da uberização do trabalho. 

Ao estabelecer um percentual de ganhos dentro desses aplicativos, as plataformas impedem que esses trabalhadores definam o preço do seu próprio serviço. Consequentemente, para ter lucro com esse tipo de prestação de serviço, os profissionais precisam executar uma jornada de trabalho ainda mais longa e extenuante do que em empregos formais.

Economia dos bicos e precarização

Para os trabalhadores informais, os dados não são animadores. Ao invés de atividades bem remuneradas e com condições mais flexíveis para o profissional, o que vem acontecendo é o oposto, com destaque para uma jornada de trabalho exaustiva, baixa remuneração e perda de direitos trabalhistas.

O relatório Fairwork Brazil 2023 analisou 10 plataformas em relação aos princípios de trabalho justo levando em consideração cinco princípios que foram desenvolvidos em uma série de workshops na Organização Internacional do Trabalho (OIT):

  1. Remuneração;
  2. Condições de trabalho; 
  3. Contratos; 
  4. Gestão;
  5. Representação.   

As plataformas foram submetidas a uma avaliação de 0 a 10 pontos em dez critérios baseados nesses princípios. Entretanto, apenas seriam pontuadas aquelas que conseguissem, efetivamente, comprovar a implementação dos princípios supracitados.

Diante disso, as evidências coletadas pelo relatório demonstram uma grande preocupação para os trabalhadores de plataformas: apenas 3 delas obtiveram ao menos um ponto. 

O estudo apresenta um cenário precário no exercício das atividades desses prestadores de serviços, que assim como em outros países, sofrem com a falta de segurança e de uma rede de proteção trabalhista. 

Regulamentação do trabalho em aplicativos

Apesar de todas as consequências que a uberização do trabalho trouxe para os trabalhadores informais — sobretudo para aqueles que prestam serviços para as grandes plataformas digitais — ainda sim é um conceito promissor.

Afinal, é inegável a eficiência das plataformas em promover a intermediação de diversos tipos de interações entre produtores e consumidores. Não à toa, muitas delas cresceram vertiginosamente nos últimos anos.

Entretanto, o capitalismo de plataforma tem se mostrado ineficiente em garantir as condições de trabalho mínimas, como o direito a descanso, remunerações justas e rede de apoio ao trabalhador em caso de acidentes ou doenças.

Parte disso é causado pela falta de uma regulamentação para o setor. Há, todavia, a intenção do poder público em regulamentar o trabalho por aplicativo. A proposta prevê a contribuição para o INSS, mas deixa claro não haver vínculo empregatício entre os prestadores de serviços e as plataformas digitais. 

Contudo, somente a regulamentação dessa categoria não resolve todas as questões relacionadas às consequências da uberização do trabalho, como a remuneração desproporcional e a falta de uma representação eficaz para a classe.

Uma nova preocupação surge no mercado  

Tendo em vista o cenário apresentado acima, novas empresas estão surgindo no mercado com a preocupação em minimizar os impactos causados pela uberização do trabalho. É o caso do AppJusto, uma plataforma de delivery que busca garantir condições melhores aos entregadores cadastrados, a começar pela remuneração. 

Nesse sentido, a remuneração na frota do AppJusto possui um valor mínimo de R$ 10,00 até 5 km percorridos. A cada quilômetro adicional, há um acréscimo de R$ 2,00 para o entregador. Em outros aplicativos, como no Ifood por exemplo, o valor mínimo da rota é de apenas R$ 5,31 e a taxa adicional oferecida aos trabalhadores é válida somente a partir de 5 km de distância.

O AppJusto surgiu com o propósito de viabilizar um modelo de economia de plataforma mais justo e que ofereça autonomia de verdade aos participantes. A plataforma ainda está em estágio de expandir a sua abrangência, que no momento atende apenas as regiões de Pinheiros e Itaim Bibi, na cidade de São Paulo. O AppJusto, aliás, foi a plataforma melhor avaliada no relatório Fairwork Brasil 2023.

Apesar da iniciativa proposta pelo aplicativo ser muito promissora, ela não é a única. Outro setor que já visa o mercado de plataformas digitais há algum tempo é o cooperativismo, que já possui em seus princípios uma gestão mais democrática e a participação econômica dos associados. 

Cooperativismo de plataformas como alternativa à uberização do trabalho

Nos últimos anos, as plataformas digitais se tornaram não apenas uma oportunidade, mas também uma solução para outro setor muito importante da economia brasileira: o cooperativismo. Isso é o que chamamos de cooperativismo de plataforma

O cooperativismo de plataforma se apresenta como uma alternativa à uberização do trabalho já que visa uma governança democrática e uma economia digital mais justa. Na prática, essas plataformas são geridas pelos próprios trabalhadores, isto é, os profissionais deixam de ser apenas prestadores de serviços e assumem a propriedade da plataforma.

Esse tipo de iniciativa garante aos profissionais uma remuneração mais justa e um repasse de lucros mais democrático. Um exemplo disso é a cooperativa francesa Olvo, formada por entregadores.

O grande diferencial entre a cooperativa francesa e as demais plataformas digitais são as condições de trabalho oferecidas aos associados, além de benefícios, como um plano de saúde pago pela própria instituição e uma remuneração que está acima do salário mínimo exigido no país, que é de € 1.231 líquidos mensais.   

Mas este não é um caso isolado. Em todo o mundo, cada vez mais cooperativas de plataformas estão surgindo em resposta à precarização das condições de trabalho. No Brasil, o movimento ainda está em processo de amadurecimento. Veja alguns exemplos de cooperativas de plataformas que encaram a uberização do trabalho:  

LigaCoop: desafiando a uberização do trabalho na mobilidade urbana

A LigaCoop é uma federação brasileira de cooperativas de mobilidade urbana formada pelos próprios motoristas. A ideia é unir forças por meio da intercooperação a fim de que cooperativas de plataforma de diversas cidades compartilhem um mesmo aplicativo.

O embrião da LigaCoop surgiu na Comobi, uma cooperativa de Caxias do Sul/RS. A coop foi criada devido à falta de diálogo entre os aplicativos de mobilidade urbana e os motoristas.

Em 2021, a cooperativa lançou seu aplicativo, batizado de Liga by Comobi. O sucesso foi imediato, mas a tecnologia não era boa e prejudicou o potencial do app. Com isso, a solução foi unir diversas cooperativas que passavam por desafios semelhantes em busca de uma solução comum.

Assim surgiu a federação LigaCoop, com um app que já está operando em algumas cidades, como Caxias do Sul e São Carlos, no interior de São Paulo.

FairCab: pioneirismo na mobilidade urbana europeia

Com o objetivo de ser uma alternativa ao Uber, a FairCab é uma cooperativa de plataforma que foca especificamente em transfers de aeroporto em regiões da Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo e Alemanha. 

A proposta é que os próprios motoristas sejam donos da cooperativa e tenham condições mais dignas de trabalho, bem como uma remuneração mais justa e ofereçam aos seus clientes valores mais acessíveis.

Os passageiros conseguem agendar suas viagens on-line e quanto maior for a antecedência, melhores são os preços da corrida. Por se tratar de um modelo de viagens compartilhadas, com 3 a 4 pessoas no mesmo veículo, a cooperativa promete oferecer valores mais atrativos do que transportes públicos, por exemplo. 

Mensakas: entregadores contra a uberização do trabalho

Com um modelo de trabalho muito parecido com o Rappi, a cooperativa de plataforma Mensakas surgiu com o objetivo de provar que é possível criar uma alternativa de entrega responsável, prestando um serviço mais eficiente e ético.

Mensakas é uma alternativa à uberização do trabalho em Barcelona, na Espanha

Como a cooperativa não possui fins lucrativos, ela tem como valores a ajuda mútua e responsabilidade para alcançar um objetivo social, gerando empregos mais dignos e incentivando o comércio local. 

Outro diferencial da Mensakas é a preocupação com o meio ambiente e, por isso, os entregadores associados à cooperativa utilizam bicicletas como principal meio de transporte. 

Atualmente, a instituição também conta com o apoio de outra cooperativa para aprimorar os recursos do seu aplicativo, a Coopcycle. Essa intercooperação gera um fortalecimento no sistema cooperativista e também contribui para amenizar os efeitos da uberização do trabalho. 

Desde 2018, a Mensakas conseguiu consolidar seu trabalho em três frentes na cidade de Barcelona, na Espanha: a entrega de encomendas, o delivery de pedidos e o serviço de entrega de última milha, em que uma empresa de logística descarrega seus pedidos no hub da Mensakas e os entregadores da cooperativa os distribuem para os clientes.

Conclusão: a era da uberização do trabalho  

A uberização do trabalho é uma consequência colateral da inovação tecnológica que cria novos serviços e altera a lógica de consumo. Receber comida na porta de casa ou chegar ao seu destino com conforto e preços baixos se tornou padrão da vida de muita gente. Essa realidade, portanto, não vai mudar.

Contudo, os problemas que surgem em meio a essa dinâmica econômica precisam ser enfrentados para proporcionar condições dignas aos trabalhadores. Nesse contexto, a solução para lidar com as vicissitudes na economia de plataforma pode estar no modelo de negócios cooperativista. 

Agora que você já sabe o que significa uberização do trabalho e quais são as suas consequências, aproveite para se aprofundar mais no cooperativismo e confira as iniciativas de duas aceleradoras de cooperativas de plataforma: Start.Coop e Unfound.

As cooperativas de plataforma são potencializadas quando existe um ecossistema de inovação cooperativista. Se você quer fazer parte desse ecossistema e apoiar o empreendedorismo cooperativista, faça parte da comunidade do RadarCoop!

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Débora Ramos
Débora Ramos
Jornalista, redatora publicitária e, atualmente, é analista de conteúdo na Coonecta.