Cooperativismo e futebol: uma relação para fortalecer as raízes do esporte

O futebol brasileiro passa por um momento de transição de seus modelos de negócio. Tradicionalmente geridos como clubes associativos, vários grandes times brasileiros estão migrando para o novo formato de SAF, a Sociedade Anônima do Futebol.

A criação do modelo de SAF, em 2021, reflete a necessidade de modernizar a gestão dos clubes brasileiros. Administrações temerárias e amadoras deixaram grandes times em situações financeiras insustentáveis. Agora, eles se apegam ao novo modelo de negócios para que possam voltar a ser competitivos. É o caso de Cruzeiro, Botafogo, Vasco e Bahia, por exemplo. 

O objetivo das SAFs é profissionalizar a gestão dos clubes de futebol tornando-os clubes-empresas, com normas de governança mais rígidas e controles financeiros estruturados. A lógica é que, assim, os times sejam tocados como as empresas mercantis – inclusive em relação aos riscos do negócio.

Diante disso, na Coonecta, fanáticos por futebol que somos, nos perguntamos: um clube de futebol poderia ser estruturado como uma cooperativa? Que benefícios o cooperativismo poderia trazer para o futebol? Esse modelo já foi tentado em algum lugar? Além disso, as cooperativas têm algum outro tipo de relação com o futebol?

Essa curiosidade sobre a junção de duas coisas que estão em nossos corações – cooperativismo e futebol – deu origem a este artigo. Aproveite a leitura!

Parte 1: Modelo de negócios: cooperativismo e futebol combinam?

De cara, cooperativismo e futebol já apresentam algo em comum: a origem britânica no século XIX. Só que enquanto o cooperativismo moderno, mesmo com o crescimento global, manteve a base dos princípios dos pioneiros de Rochdale, o futebol virou mercadoria de alcance global, deixando de lado o amadorismo e a conexão com a comunidade.

O campeonato inglês, por exemplo, é acompanhado ao redor do mundo, impulsionado pela globalização. Só com o dinheiro da venda dos direitos de televisão, os clubes da Premier League arrecadam quase R$ 15 bilhões. Atraindo os melhores jogadores do mundo, as equipes da liga inglesa acumulam torcida em todos os continentes.

Com isso, a Premier League se tornou um negócio um tanto rentável. Na Inglaterra, os clubes operam como empresas e, assim, muitos deles se distanciaram dos seus torcedores locais e, atualmente, servem somente aos interesses de seus donos e executivos. 

O caso de Wimbledon

Veja o caso do Wimbledom F.C, um pequeno mas tradicional clube de Londres. Em 2002, os dirigentes da equipe resolveram transferir o time para outra cidade em busca de maior potencial mercadológico. Além da mudança de endereço, o nome do time foi alterado para Milton Keynes Dons, deixando a comunidade de Wimbledon orfã de sua equipe local.

Os torcedores, então, fundaram o AFC Wimbledon, uma espécie de sucessor espiritual da equipe pródiga. Em campo, os resultados são modestos e o clube navega pelas divisões inferiores da pirâmide do futebol inglês – hoje, o time joga a quarta divisão local, o degrau mais baixo do futebol profissional no país.

Cooperativismo e futebol: torcida do Torcida do AFC Wimbledon em partida da League Two, a quarta divisão inglesa.
Torcida do AFC Wimbledon em partida da League Two, a quarta divisão inglesa. Imagem: Twitter @AFCWimbledon

O clube é mantido pelos próprios torcedores por meio de um fundo que controla 77% da propriedade da equipe, sem fins lucrativos. Embora não seja legalmente registrado como uma cooperativa, o AFC Wimbledon coloca em prática diversos princípios do cooperativismo, mais notadamente:

  • Adesão voluntária e livre: o fundo que controla o clube opera com entidade de livre admissão. Atualmente, o grupo conta com 4.500 membros ativos espalhados pelo mundo.
  • Gestão democrática: a equipe é administrada democraticamente, com o princípio de “um membro, um voto”. Os membros participam de assembleias anuais para eleger a diretoria. 
  • Interesse pela comunidade: o clube mantém uma fundação que promove atividades comunitárias no bairro que sedia o estádio. Além disso, o time apoia uma iniciativa de combate à fome, enfrentamento à pobreza e apoio à educação, criada durante a pandemia de Covid-19. 

Um clube de futebol seria melhor gerido como cooperativa?

Essa é a pergunta que Dave Boyle, que dirigiu entidades de torcedores ingleses, tentou responder em um artigo para o tradicional jornal The Guardian. Boyle discorre sobre como os clubes de futebol deixaram, paulatinamente, suas raízes e, agora, atendem aos interesses de poucos em detrimento das comunidades.

O futebol atende a uma profunda necessidade humana de pertencimento comunitário e por isso, argumenta Boyle, “o modelo de cooperativa se encaixa perfeitamente com o futebol”. Ele exemplifica sua lógica com casos de sucesso obtido por times controlados por seus torcedores, os chamados “fan owned clubs”.

Na Alemanha, por exemplo, a legislação garante que os torcedores controlem os clubes por meio da regra conhecida como 50%+1. Isso quer dizer que os times alemães e seus associados devem manter a maioria das ações das instituições, evitando que um único investidor obtenha o controle dos negócios – com exceção de duas equipes, o Bayer Leverkusen e o Wolfsburg, cuja propriedade por parte de grandes empresas precede a regra.

Na Inglaterra, analisa o articulista, o movimento para empregar os valores e virtudes das cooperativas no futebol começou somente após a virada do século. Mas, ele pontua, as iniciativas das cooperativas de torcedores têm se mostrado uma ferramenta importante para reerguer equipes tradicionais que se encontram em maus lençóis após administrações ruins. 

Contudo, “para realmente mudar a cara do futebol, será preciso mais do que esperar que casos perdidos cheguem ao domínio dos torcedores”, escreve Boyle. O cooperativismo, assim, emerge como um modelo que pode ser referência para a construção de um futebol mais sustentável e conectado às suas raízes.

Fan owned: o modelo que une os gigantes espanhóis

Apesar da enorme rivalidade que se impõe entre Real Madrid e Barcelona, eles carregam algo em comum: o caráter cooperativo. Tanto o time da capital quanto a equipe catalã são geridos por seus associados, no modelo fan ownded.

A identidade do Barcelona é fortemente conectada às raízes do clube e ao orgulho catalão, uma região da Espanha que conta com idioma próprio e movimentos separatistas. O lema da equipe, “mais que um clube”, posiciona o Barcelona como representante da identidade da Catalunha. Historicamente, a adesão ao quadro associativo do clube é limitada a parentes de membros, mas parte dessas limitações caiu recentemente.

O Real Madrid opera em um modelo semelhante, com seus mais de 100 mil associados, responsáveis pela gestão do clube, por meio de eleições a cada quatro anos. O poderio financeiro das duas equipes, que estão entre as mais ricas do mundo, comprova que o modelo cooperativo impulsiona a grandeza e fortalece os negócios. 

Estrutura jurídica

O cooperativismo foi a solução proposta pela professora Maria de Fátima Ribeiro, da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, para melhorar a governança dos clubes portugueses uma vez que, ela argumenta, o controle privado tradicional está causando problemas financeiros provocados pela má gestão. 

Em um artigo acadêmico, a professora especula sobre a opção cooperativista para os clubes, levando em conta os princípios legais do cooperativismo europeu. Cooperativas esportivas, conforme a regulamentação local, poderiam praticar futebol de forma profissional ou amadora, além de proporcionar aos seus cooperados:

  • Acesso ao esporte;
  • Atividades educativas;
  • Organização de eventos esportivos comunitários;
  • Ingressos mais baratos para os jogos;

“No futebol, a participação dos torcedores é fundamental para o sucesso dos negócios”, escreve a acadêmica. Assim, se os torcedores têm confiança na gestão do clube e podem tomar parte nas decisões, eles estarão mais propensos a investir na equipe – seja pela compra de ingressos, aquisição de produtos ou investimentos de capital. “A estrutura de governança cooperativa promove essa sensação de confiança ao mesmo tempo em que garante os níveis de profissionalismo”. 

Por fim, conclui a autora, as cooperativas prezam pelos desejos de seus membros. No contexto português, isso faz com que o cooperativismo seja um modelo legal mais eficiente para times de futebol do que clubes associativos. “Cooperativas são atraentes para os torcedores, já que proporcionam bens e serviços enquanto permitem que eles participem do projeto esportivo”. 

Cruz Azul: a união dos modelos

No México, a maioria dos clubes de elite funciona como empresa. O Tigres, clube mais vitorioso da última década no país, é gerido pela Cemex, a terceira maior produtora de cimentos do mundo, por exemplo. Mas isso não quer dizer que não há espaço para o cooperativismo nesse ambiente.

A Cooperativa La Cruz Azul, fundada em 1881, também se tornou uma das produtoras de cimento mais importantes do país. Atualmente, sua estrutura organizacional é mista: duas plantas de operações operam como cooperativas, enquanto outras duas funcionam como sociedades anônimas. 

Ainda em 1927, diretores da Cruz Azul resolveram fundar um clube de futebol, que leva o mesmo nome da cooperativa. Durante três décadas, a equipe era formada por funcionários e disputava torneios amadores. Na década de 60, contudo, a equipe se profissionalizou e logo chegou à primeira divisão. Em 1970, o Cruz Azul se consolidou como um dos gigantes locais.

Gerido como um clube-empresa, o Cruz Azul é reconhecido pela forte ligação que mantém com a comunidade local, mesmo nas fases ruins, e é o clube mexicano profissional mais semelhante a um clube associativo. No mais, a cooperativa mantém um time secundário, o Cruz Azul Hidalgo, focado no desenvolvimento de jovens atletas. 

Mushuc Runa: de cooperativa de crédito ao futebol continental

Do Equador vem a história de uma cooperativa de crédito indígena que montou um clube de futebol de sucesso – tanto que seu escrete chegou a disputar a Copa Sul-Americana. Cansados de ter acesso a crédito negado pelos grandes bancos, um grupo de indígenas em Ambato criou a Cooperativa de Ahorro y Crédito Mushuc Runa, em 1977, para atender a comunidade. Oriundo do quéchua, um dos idiomas locais, Mushuc Runa quer dizer “homem novo”.

O Mushuc Runa surgiu de uma cooperativa de crédito indígena no Equador e chegou a torneios internacionais.
O Mushuc Runa surgiu de uma cooperativa de crédito indígena no Equador e chegou a torneios internacionais. Imagem: Carlos Figueroa Rojas

Em 2003, a cooperativa deu início à sua jornada nos gramados, formando um clube de futebol. Após navegar pelas divisões inferiores, o pequeno time chegou à elite local pela primeira vez em 2014. Em 2018, o Mushuc Runa se classificou para a Copa Sul-Americana, o torneio continental secundário, do ano seguinte.

Zebra, o Mushuc Runa eliminou o tradicional Aucas, da capital Quito, na fase preliminar. Mas logo em seguida caiu nos pênaltis para o Unión Española, do Chile. Em 2022, repetiu a dose, mas não passou do primeiro jogo, contra os gigantes locais da LDU. Mesmo assim, o Mushuc Runa representa o orgulho indígena, fortalecido por meio do modelo cooperativista. 

Parte 2: Cooperativismo e futebol no Brasil

O cooperativismo brasileiro é uma potência. De acordo com o Anuário do Cooperativismo Brasileiro, feito pela OCB, o Brasil encerrou 2021 com 4.880 cooperativas registradas pelo Sistema OCB, somando quase 19 milhões de cooperados. Além disso, são 500 mil colaboradores e 784 bilhões de reais em ativos.

O protagonismo do cooperativismo brasileiro também fica evidente em âmbito global. Afinal, das 300 maiores cooperativas do mundo, 22 estão no Brasil, segundo o levantamento World Cooperative Monitor

Levando em conta a disseminação do cooperativismo no Brasil, é de se imaginar que esse movimento se relacione de alguma forma com a paixão nacional: o futebol. Por isso, na segunda parte deste artigo sobre futebol e cooperativismo, iremos explorar as conexões entre cooperativismo e futebol no Brasil.

Cooperativa Manchester de Futebol

O Brasil já teve a sua primeira cooperativa de futebol – ao menos no nome. Em meados da década de 90, o futebol de Juiz de Fora, cidade tradicional do interior de Minas Gerais, estava passando por maus bocados. 

Sem representantes na primeira divisão estadual, os três clubes da cidade (Tupi, Tupynambas e Sport) decidiram unir suas forças, inspirados pela experiência de sucesso do Paraná Clube, fruto de uma fusão na década anterior. Assim, em 1994 surge a Cooperativa Manchester de Futebol, batizada em homenagem ao apelido da cidade: a Manchester Mineira. 

Logo no primeiro ano, as coisas começaram bem. De cara, o time conseguiu o acesso para a primeira divisão estadual na edição seguinte. Porém as expectativas otimistas logo foram rechaçadas. Amargando a lanterna, a Cooperativa Manchester de futebol foi rebaixada em 1995, com apenas três vitórias em 22 jogos.

A Cooperativa Manchester de Futebol reuniu os três times profissionais de Juiz de Fora.
A Cooperativa Manchester de Futebol reuniu os três times profissionais de Juiz de Fora. Reprodução: Blog Recordar Tupi

Sem conseguir empolgar a comunidade juiz-forana, a Cooperativa Manchester de Futebol chegou ao fim em 1996. Apesar do nome, não conseguimos encontrar informações capazes de elucidar se o clube foi, de fato, constituído como uma cooperativa de segundo grau

Cooperativa de árbitros

Criada em 2021, a Cooparb – Cooperativa de Árbitros de Rio Branco – reúne árbitros e bandeirinhas acrianos que atuam tanto no quadro nacional da CBF quanto na federação local de futebol. 

Assim, a cooperativa de trabalho marca presença em torneios amadores, campeonatos de base e certames profissionais. Em seu Instagram, a entidade registra as participações de seus árbitros cooperados em partidas da Série C, da terceira divisão nacional, e da Série D, a quarta, além da elite do torneio estadual local e competições femininas.

No ano passado, a Cooperativa entrou em evidência ao sair em defesa do árbitro cooperado Jackson Rodrigues. O juiz diz ter sido agredido física e verbalmente por um zagueiro em uma partida amadora, em Rio Branco.

Fora do Brasil, a cooperativa de árbitros mais relevante fica na Argentina. A Cooperativa de Árbitros Rosário, criada em 2008, atua na formação dos profissionais do apito e seu quadro conta com árbitros que trabalham na elite do futebol no país. 

Patrocínios

As cooperativas brasileiras cumprem um papel importante no futebol regional por meio do apoio a clubes locais via patrocínio. Talvez a parceria de maior destaque seja a longeva relação entre a Cooperativa Central Aurora Alimentos e a Chapecoense, de Santa Catarina. A união começou quando o clube sequer disputava competições nacionais e ajudou a equipe a escalar a pirâmide nacional. 

A parceria entre Chapecoense e Aurora já dura mais de 16 anos. Imagem: Divulgação Chapecoense

Outros exemplos são abundantes. Durante a crise financeira provocada pela pandemia, a cooperativa de crédito Sicoob Acre apoiou o Galvez com a confecção de 500 camisas de uma edição limitada com o objetivo de arrecadar fundos para ajudar as contas da equipe.

Além de apoiar clubes, as cooperativas também estão se tornando patrocinadoras das competições esportivas. O Sicredi, por exemplo, patrocina a Copa do Brasil e o Campeonato Paulista de Futebol – duas das competições mais importantes do calendário nacional. O apoio ao desenvolvimento do futebol feminino também faz parte das ações da coop.

Dessa forma, as cooperativas encontram uma forma de apoiar o esporte local, estreitando laços com as comunidades locais ao mesmo tempo em que divulgam e fortalecem suas marcas junto à grande paixão nacional, unindo cooperativismo e futebol. 

Juntos e mais fortes

Em uma entrevista para o livro O futebol como ele é, o ex-presidente do Atlético-MG Alexandre Kalil argumentou que o Clube dos 13, um bloco que negociava direitos de transmissão dos maiores times do Brasil de forma coletiva, funcionava como uma cooperativa. 

“Se nós estamos aqui numa cooperativa, e o Clube dos 13 é uma cooperativa, essa cooperativa existe para ajudar os clubes que fazem parte dela”. Este trecho faz parte de um depoimento que o ex-dirigente deu justamente sobre a implosão do grupo, que culminou nas negociações individuais dos direitos de televisão.

Contudo, o sucesso comercial da Premier League comprovou que a negociação coletiva é positiva. Demorou, mas os clubes brasileiros, aparentemente, notaram que são mais fortes quando estão juntos. Ainda que muitas divergências precisem ser resolvidas, a formação de uma Liga brasileira parece iminente. O futebol notou que cooperar é bom negócio. 

Conclusão

O futebol funciona como meio de construção da identidade comunitária, onde a colaboração é, muitas vezes, mais importante do que o resultado em si. Um ano após a dolorosa derrota do Brasil para a Hungria na Copa do Mundo de 1954, o sociólogo Gilberto Freyre escreveu que:

“Para efeitos práticos de vitórias nos torneios de hoje, caracterizados por uma nítida predominância de padrões anglo-saxônicos, melhor fora que a tendência brasileira de jogo fosse cooperativista”. 

Em seu livro Dando tratos à bola, o historiador Hilário Franco Júnior exalta a capacidade do futebol “para despertar um sentimento de grupo”. Com isso, o futebol proporciona senso de pertencimento, fortalecendo as relações sociais e de comunidade com sua natureza colaborativa.

Ou melhor: cooperativa

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Gustavo Bezerra
Jornalista pós-graduado em Jornalismo Contemporâneo e Digital. Foi integrante do programa Estagiar da TV Globo. É apaixonado por literatura. Atualmente, é redator da Coonecta.