“Tem pé de porco, barriga de porco, rabo de porco… mas não é porco”: a falsa identidade de algumas “cooperativas”

O cooperativismo tem ganhado cada vez mais visibilidade como alternativa ao modelo empresarial tradicional, principalmente para fazer frente às Big Techs. Com base em princípios como a democracia interna, a participação econômica dos membros e o interesse pela comunidade, as cooperativas promovem um caminho mais justo e inclusivo. 

No entanto, nem toda organização que se apresenta como cooperativa é realmente o que parece ser. Como diz o ditado, “tem pé de porco, barriga de porco, rabo de porco, mas não é porco”. 

Essas “falsas cooperativas” adotam a estrutura jurídica, o nome, elaboram o estatuto e até mesmo realizam assembleias gerais, formalmente seguem o “script” legal. Na prática, porém, desrespeitam os valores e princípios cooperativistas, assim como ignoram completamente as balizas da Declaração da Identidade Cooperativa

“Cooperativas” sem princípios

Um exemplo claro está no princípio da “adesão voluntária e livre”, que deveria permitir a participação de todos que estão dispostos a contribuir e que preencham os requisitos técnicos e legais para cooperar. 

Contudo, muitas dessas organizações criam barreiras de entrada disfarçadas, exigindo, além de excessivos valores de quota-parte, a cobrança de “prêmios” ou “taxas” de mobilização – o que é vedado por lei (art. 37, II da lei 5764/71). Ou ainda, estabelecem critérios seletivos que excluem quem mais precisaria desse modelo. Parece cooperativa, mas age como uma empresa elitista.

Outro ponto crucial comumente violado é o “controle democrático pelos membros”, que pressupõe que cada pessoa tem um voto, independentemente de quanto capital possui. Todavia, não é raro encontrar cooperativas onde um pequeno grupo centraliza o poder e toma decisões sem a participação efetiva dos demais. Isso cria um ambiente onde a voz de muitos é sufocada por poucos. 

A “participação econômica dos membros” também é distorcida em muitas dessas organizações. Em vez de uma distribuição justa dos excedentes, o que se vê é uma divisão desigual, que privilegia uma minoria. Essas cooperativas, ao invés de promoverem a equidade, reproduzem práticas de lucro desproporcional, semelhantes às empresas tradicionais. 

Nessa dinâmica, a maioria dos cooperados, que deveria ser o coração da cooperativa, acaba recebendo migalhas. “Quem anda com porco, come farelo”, diz o ditado. E é exatamente o que acontece com muitos desses membros.

Além disso, o princípio da “intercooperação”, que prega a colaboração entre cooperativas, é frequentemente ignorado. Algumas “cooperativas” preferem competir com outras, encarando-as como rivais, em vez de fortalecer o movimento como um todo. 

Essa mentalidade competitiva e individualista é totalmente oposta ao espírito de cooperação que deveria guiar essas organizações. O que deveria ser uma rede de apoio mútua se transforma em uma corrida pelo mercado, minando o potencial transformador do cooperativismo.

Falsas cooperativas e os riscos para o cooperativismo

Essas “falsas cooperativas” não só desvirtuam os princípios cooperativistas, como também colocam em risco a credibilidade de todo o movimento.  

Quando uma organização se apropria do nome e da estrutura de uma cooperativa, mas age como uma empresa privada, ela compromete a confiança no modelo. Afinal, quem olha de fora e vê práticas excludentes e centralizadoras pode facilmente concluir que o cooperativismo não é tão diferente do capitalismo convencional.

Quem não se lembra da “epidemia” de “pseudo-cooperativas” de trabalho que proliferou nos anos 1990? O prejuízo moral que elas trouxeram ao movimento cooperativo é sentido até hoje, principalmente nas Cortes de Justiça. 

Portanto, é essencial que o movimento cooperativo esteja atento a essas organizações que carregam o nome de cooperativa, mas não a essência. Para manter o verdadeiro espírito do cooperativismo vivo, é preciso ir além da forma e garantir que os princípios sejam cumpridos na prática. Somente assim o cooperativismo poderá continuar sendo uma verdadeira alternativa de transformação social e econômica.

Por fim, fica o lembrete: “focinho de porco não é tomada”. Nem tudo que parece ser uma cooperativa funciona como tal.


Nota: As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva de seu autor e não refletem necessariamente a posição da Coonecta. Valorizamos a diversidade de perspectivas e o debate aberto sobre o cooperativismo.

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Fernando Lucindo
Fernando Lucindo
Advogado, especialista em Direito Cooperativo pela PUC/MG, membro da Comissão de Direito Cooperativo da OAB/MG, pós-graduando em Advocacia Digital pela EBRADI/ESA/OABSP.