O agro e o senso de justiça na agenda da descarbonização

No primeiro semestre de 2023, uma pesquisa conduzida pela Embrapa Trigo RS e a Universidade Federal de Santa Maria fez grandes achados. O estudo comprovou que o trigo é capaz de sequestrar mais carbono que emite para a atmosfera. Os cientistas observaram que durante o ciclo produtivo, o trigo absorveu um total de 7.540 kg de dióxido de carbono (CO2) por hectare da atmosfera, neutralizando as emissões dos períodos de pousio (sem plantas de cobertura do solo ou cultura geradora de renda sob a forma de forragem ou produção de grãos), e garantindo a oferta líquida de 1.850 kg de CO2 por hectare (VEECK et al., 2022). 

Esse primeiro parágrafo pode gerar várias reflexões – e neste artigo pretendo explorar a seguinte indagação: como e quanto podemos avançar para que o agronegócio figure de forma justa no balanço de carbono nacional?

Todo ano o CEO da Black Rock, Larry Fink, publica uma “Carta a CEOs” e a tônica é a descarbonização da economia. O executivo, que capitaneia a gestão de US$ 9 trilhões, acredita que esse movimento vai criar a maior oportunidade de investimento da nossa vida e punirá as organizações que não se adaptarem, independentemente em que indústria estiverem. (FINK, 2022)

Esse mundo novo de oportunidades na economia de baixo carbono precisa levar em consideração que caminhamos para uma população de 9,7 bilhões de habitantes até 2050 e, para que tenhamos paz, é necessário que haja produção compatível de alimentos.

Um planeta com recursos naturais finitos demandará mais comida, energia e bem-estar, o que requer uso mais eficiente das riquezas da natureza. Os recursos necessários para a produção de alimentos (sementes, solo, matéria orgânica, água) são renováveis, o que deveria permitir que a agricultura fosse uma atividade altamente sustentável.

No Brasil, a cadeia de valor agroalimentar tem desempenhado historicamente um papel estratégico na sociedade brasileira, caracterizando-se como uma das principais bases de sustentação econômica do país. Desde o início da história do Brasil, em praticamente todos os principais ciclos econômicos, o setor teve grande influência no âmbito da sociedade brasileira (ANDREOLI; PHILIPPI JR, 2021). Atualmente, se considerarmos o agronegócio, com a chamada “porteira para dentro” e “porteira para fora”, chegamos a uma participação de 26% do PIB.

Isso porque o Brasil tem dimensões continentais, com seus 851 milhões de hectares, e um esplendor natural que deve fazer inveja a países tidos como desenvolvidos. Ocorre que o desenvolvimento, tal como é mensurado, está amparado muito na industrialização – a qual foi construída em cima de um passivo ambiental e teve como consequência a devastação de áreas de vegetação nativa no curso da história dos “países ricos”. Enquanto isso, o Brasil apresenta esses números fascinantes na sua ocupação de terras:

Figura 1: Ocupação de terras no Brasil

Gráfico: ocupação de terras no Brail

Fonte: SFB, Embrapa, IBGE, MMA, Funai, DNIT, ANA, MPOG apud ABAGRP (2021).

Segundo a Embrapa Territorial, as áreas dedicadas à proteção e à preservação da vegetação nativa no Brasil equivalem a 28 países da Europa: Irlanda, Reino Unido, Portugal, Espanha, França, Bélgica, Luxemburgo, Alemanha, Áustria, Itália, Holanda, Eslovênia, Dinamarca, Noruega, Suécia, Grécia, Bósnia e Herzegovina, Eslováquia, Eslovênia, República Tcheca, Polônia, Romênia, Bulgária, Chipre, Letônia, Lituânia, Estônia e Finlândia.

Apesar das fragilidades que ainda podem ser verificadas em algumas propriedades, como áreas degradadas, adoção de práticas não sustentáveis, como queimadas, adubação inadequada, preparo intensivo do solo, não observação das curvas de nível e inexistência de práticas conservacionistas, que estão sob o escrutínio das nações que buscam os objetivos planetários de contenção da elevação da temperatura média, o Brasil tem tudo para se tornar o grande fornecedor de alimentos para o mundo. 

O grande desafio do agro brasileiro é justamente a adoção de práticas em direção à redução dos gases de efeito estufa ou, se preferir, em aderência com as expectativas mundiais da economia de baixo carbono. Nesse contexto, é preciso fortalecer e valorizar o uso da informação técnica e científica para lastrear a continuidade do processo de democratização da oferta alimentar. Para criar uma ponte entre a miséria e o desenvolvimento será necessário investir em conhecimento científico que permita o desenvolvimento de sistemas de produção voltados para o aumento da produtividade dos recursos naturais e serviços ambientais utilizados na produção de alimentos (ANDREOLI; PHILIPPI JR, 2021).  

A pesquisa em recursos genéticos e melhoramento vegetal tem contribuído significativamente para o desenvolvimento de sistemas produtivos ambientalmente mais adequados, agregando tolerância a estresses e eficiência no uso de nutrientes, viabilizando sistemas de cultivo regenerativos na agricultura. Vale lembrar que, nas décadas de 1960 e 1970, o Brasil chegou a pagar o alimento mais caro do mundo – até 48% da renda das famílias. Desde o início do Novo Milênio, esse percentual baixou para 14% (EMBRAPA GEOPOLÍTICA).

Em julho de 2023, pude acompanhar a colheita de café na região de Patrocínio-MG e fiquei muito impressionado com a paixão da Família Montanari pela agricultura regenerativa. Foi possível verificar técnicas como solo vivo, rochagem, compostagem orgânica, inundação biológica e utilização de plantas de cobertura, abaixo registrada:

Figura 2: Plantas de cobertura utilizadas no cultivo do café, na Fazenda São Paulo, em Patrocínio-MG

Plantas de cobertura utilizadas no cultivo de café, em Patrocínio-MG.

Imagem: acervo pessoal do autor

A grande pressão da agricultura sobre o meio ambiente, em especial os impactos cada vez mais preocupantes da pecuária sobre os processos de mudança climática global, indicam que é preciso buscar um novo patamar de conhecimento, além de um novo paradigma científico e tecnológico. O Brasil tem excelentes exemplos de manejo conservacionista de cultivos, como a utilização de controle biológico a partir biofábricas para multiplicação de microorganismos, que substituem gradativamente os agrotóxicos sintéticos, e a fixação biológica do nitrogênio, por meio da inoculação de bactérias diazotróficas. Isso tem possibilitado a redução significativa da aplicação de fertilizantes sintéticos, grandes emissores de óxido nitroso e contaminadores de recursos hídricos.

Nas próximas décadas, a reabilitação de pastagens degradadas e a intensificação sustentável da agropecuária podem poupar um vasto contingente de terras para a produção de alimentos, fibras e biocombustíveis. A abordagem da economia global de baixo carbono é indissociável dos esforços para o combate ao desmatamento no Brasil. Estudo elaborado pelo Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (Seeg), apontam que mudanças no uso da terra vêm puxando as nossas emissões de GEE. 

Tabela 1: Emissões de GEE no Brasil de 2019 a 2020

Emissões de GEE no Brasil de 2019 a 2020

Fonte: SEEG, 2021, p. 4.

Conforme a nona edição da “Análise das emissões brasileiras de gases de efeito estufa e as suas implicações para as metas climáticas do Brasil” (SEEG, 2021), foi o desmatamento, em especial na Amazônia e no Cerrado, o principal fator responsável por essa elevação das emissões de gases de efeito estufa (GEE) no nosso país. Os gases de efeito estufa lançados na atmosfera pelas mudanças do uso da terra totalizaram 46% do total bruto das emissões brasileiras em 2020, ou 998 milhões de toneladas de CO2 equivalente (MtCO2e). 

Quando consideradas as emissões líquidas, ou seja, descontando as remoções (o carbono sequestrado) por florestas secundárias e em áreas protegidas e terras indígenas, essa participação cai para 24% (362 MtCO2e). Por isso, é muito importante que os alertas de desmatamento na Amazônia, publicados pela plataforma “MapBiomas Alerta”, recebam a devida atenção. 

O mesmo vale para o sistema de monitoramento do desmatamento no Cerrado, implementado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A detecção do desmatamento por sensoriamento remoto no Cerrado é uma ação estratégica para a proteção da biodiversidade e do regime de águas na região onde nascem as principais bacias hidrográficas do País. Também é fundamental para garantir transparência sobre informações ambientais em uma das regiões mais importantes para a produção agropecuária nacional (MAPBIOMAS, 2022). 

Tabela 2: Desmembramento das emissões de GEE no Brasil

Interface gráfica do usuário, Aplicativo, Tabela

Descrição gerada automaticamente

Fonte: SEEG (2021)

O governo federal prefere reportar às Nações Unidas as emissões líquidas. O Observatório do Clima entende, porém, que, embora esse “deságio” da contabilidade das áreas protegidas seja autorizado pela UNFCCC (Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), reportar antes as emissões brutas é mais adequado, devido às peculiaridades da metodologia de cálculo de remoções no inventário brasileiro, que acaba por não representar a realidade das remoções atuais, que vêm se reduzindo à medida que o desmatamento cresce, enquanto na metodologia oficial, que só considera as áreas protegidas, elas aumentam. Abaixo temos o desmembramento por setor e, no final, o impacto das remoções no tocante à mudança de uso da terra e floresta.

Um ponto polêmico, mas que é importante colocar luz, é a mensuração da variação dos estoques de carbono do solo em áreas agrícolas, compreendendo as emissões e remoções de CO2 relacionadas à matéria orgânica do solo em: 

  • Plantações florestais comerciais (principalmente para celulose e papel) 
  • Culturas (cultivo convencional e plantio direto)
  • Sistemas integrados de produção (combinação de culturas, pecuária e floresta)
  • Pastagens (degradadas e melhoradas)

Como é possível observar na tabela 2, esta variação não é reportada no Inventário Nacional de Carbono pela dificuldade de obtenção dos dados das atividades e emissões de CO2 e, bem como fatores relacionados à permanência do carbono (CASAGRANDE, 2021).

Por isso é importante valorizar o esforço da SEEG que, desde 2015, faz estimativas do carbono emitido e removido pelo solo, que ainda não são contabilizadas pelos inventários nacionais de emissões. Trata-se de uma herança potencialmente positiva da Política Nacional sobre Mudança do Clima, com a disseminação de tecnologias de ABC (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono), que o país ainda não computa para fins de verificação do cumprimento de suas metas climáticas (SEEG, 2021).  

A relevância desse exercício é o seu potencial impacto no sucesso da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC). Vejamos os cálculos da SEEG: 

Figura 3: Balanço de emissões de carbono pelo solo do setor agropecuário em 2020. 

Balanço de emissões de carbono pelo solo do setor agropecuário em 2020

Fonte: SEEG (2021)

Por essa perspectiva, a tabela 2 deveria levar em consideração que, em 2020, o balanço de carbono no solo resultou em uma remoção líquida estimada de 150,1 milhões de toneladas de CO2 no quesito Agropecuária. 

Importante notar que a estimativa da variação do estoque de carbono de solos agrícolas feita pelo SEEG depende principalmente de consulta especializada de alguns fatores (emissão e remoção de CO2) disponíveis na literatura para condições brasileiras. Nenhum consenso científico foi alcançado sobre quanto o carbono do solo realmente varia sob a combinação de diferentes fatores de manejo, bem como a área agrícola sob diferentes manejos e suas condições de solo no Brasil. 

Portanto, as estimativas de sequestro e retenção de carbono em atividades agropecuárias ainda são suscetíveis a incertezas e devem ser usadas com cuidado (SEEG, 2021). Por outro lado, entendemos ser importante esse debate, até como incentivo a que os estudos nesse sentido prossigam à medida que a ciência avança no refino das metodologias de mensuração do impacto dos gases de efeito estufa por setor.

Notas

¹ Quanto aos 66,3% de vegetação nativa que aparece na figura 1, é preciso ressaltar que não correspondem, necessariamente, a áreas preservadas. Uma parte dessa vegetação nativa já está degradada ou já foi desmatada e está em regeneração; qualificar o estado de degradação é um dos focos atuais do MapBiomas.

² O Seeg (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa) é promovido pelo Observatório do Clima (OC), uma rede de mais de 70 organizações não governamentais de perfil socioambientalista com o objetivo de discutir a questão das mudanças climáticas no contexto brasileiro.  

Referências

ANDREOLI, C. V.; PHILIPPI JR. A. Sustentabilidade no agronegócio. Editores – 1ª Ed. – Santana da Parnaíba (SP): Manole, 2021.

CANAL RURAL. Trigo absorve mais CO2 do que emite

CASAGRANDE, R.M. Environmental, Social and Corporate Governance. Rio de Janeiro: FGV, 2022.

FINK, L. D. Carta de Larry Fink aos CEOs em 2022: o poder do capitalismo. BlackRock, 2022. 

MAPBIOMAS. País perdeu 24 árvores por segundo em 2020. 2021. 

SEEG. Análise das emissões brasileiras de gases de efeito estufa e suas implicações para as metas climáticas do Brasil

VEECK, G. P.; DALMAGO, G. A.; BREMM, T.; BULIGON, L. JACQUES, R. J. S.; FERNANDES, J. M. SANTI, A.; VARGAS, P. R. V.; ROBERTI, D. R. CO2 flux in a wheat-soybean succession in subtropical Brazil: A carbon sink. Journal of Environmental Quality, v.51, 2022. Disponível em: CO2 flux in a wheat‐soybean succession in subtropical Brazil: A carbon sink – Veeck – 2022 – Journal of Environmental Quality – Wiley Online Library

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Rodrigo Casagrande
Rodrigo Casagrande
Doutor em Ciências Contábeis e Administração, com Estágio Doutoral realizado na Université de Montréal, no Canadá. Professor autor da disciplina ESG dos MBA FGV – Fundação Getulio Vargas e coautor do livro "Ética, Sustentabilidade e Diversidade", publicado pela Editora FGV, atua como professor convidado no FGV Management, desde 2016.