Atualmente, vivenciamos o que se convencionou chamar de “Era Digital”, “Sociedade Informacional”, “Era dos Dados” ou “Quarta Revolução Industrial”, dentre outros termos, buscando designar um período de mudança conjuntural em nossa sociedade.
De forma sutil e gradativa, fomos migrando nossas relações e criando novos hábitos à medida que as tecnologias em torno do smartphone foram evoluindo.
O uso de aplicativos tem promovido uma disrupção importante e silenciosa. Smartphones abrem portas para um universo de funcionalidades e facilidades ao nosso cotidiano. Através de softwares (plataformas) criadas por grandes corporações de tecnologia (as Big Techs), nossa vida se tornou mais fácil, ágil e também mais dependente “do aparelhinho”.
Na economia dos aplicativos, surgem novos modelos de negócios, enquanto demandas tradicionais são repensadas e remodeladas.
A plataforma de mobilidade urbana “Uber”, por exemplo, vem dando uma nova roupagem ao transporte por demanda tipo “taxi”. Assim, o “Uber” está se tornando ícone e principal exemplo desse novo momento ao revolucionar nossa experiência com o transporte urbano.
Esse “capitalismo de plataforma”, apesar de aplaudido por alguns, trouxe também questionamentos sobre o modelo de precarização imposto por algumas plataformas a seus usuários. Também há críticas pela falta de transparência e concentração de poder e capital nas mãos das Big Techs, desenvolvedoras e proprietárias dessas tecnologias.
Mostrando-se predatória na maioria dos casos e subvertendo a lógica que se esperava das novas tecnologias (democratização das facilidades, igualdade de acesso e participação econômica), a voracidade do capitalismo de plataforma também causa perplexidade e indignação.
A ideia do Cooperativismo de Plataforma surge do apelo em buscar uma forma de participação mais justa, para fazer da tecnologia de plataforma uma ferramenta não para enriquecer as corporações, mas para trabalhar em benefício dos seus usuários.
Tal como o cooperativismo moderno efluiu do contexto de opressão social da Revolução Industrial em Rochdale (1844), o Cooperativismo de Plataforma também acena para a nova Revolução Industrial (tecnológica) como equalizador da balança econômico-social nesse início de século.
Apesar dessa premissa, é importante lembrar que o Cooperativismo de Plataforma não tem sua gênese no movimento cooperativo. Os primeiros que falaram sobre o Cooperativismo de Plataforma foram o professor Trebor Scholz e o jornalista Natan Schneider, nos Estados Unidos.
Essencialmente, como inovação espontânea do modelo cooperativo, o Cooperativismo de Plataforma acompanha as novas tendências em um mercado em que as principais economias despontam pela utilização de uma “plataforma” para oferecer seus serviços e negócios por meios digitais. O Cooperativismo de Plataforma também se apresenta como solução para o surgimento de novos mercados, sempre com vistas na participação e distribuição mais justa dos ganhos.
Para além desse contexto, o Cooperativismo de Plataforma pode estar sendo o marco de uma “Nova Era” para o movimento cooperativo.
Tal como vem ocorrendo com as empresas, os meios digitais nos permitem trabalhar novos formatos nas cooperativas, melhorar a gestão dos cooperados e a administração democrática. Além disso, possibilitam entender e criar propostas de valores mais relevantes para os cooperados em novos modelos de organização e de negócios.
A relevância das cooperativas tradicionais para esse século XXI dependerá da capacidade em compreensão das transformações e adaptação às tecnologias, partindo da organização através de uma plataforma tecnológica.
E a importância de posicionar as cooperativas nesse novo meio também parte da realidade de que as conjunturas desse século se desenvolverão em torno dos “dados”. A vida e a economia do século XXI será baseada nos “dados”.
Por exemplo, as maiores e principais empresas do mercado atualmente se baseiam fortemente na extração, utilização e monetização dos dados.
Dessa forma, o surgimento da ideia de um “Cooperativismo de Dados”, onde os participantes deteriam a utilização e o fluxo de todos os dados que produzem, partindo da concepção da autodeterminação informativa como um direito humano fundamental, ganha cada vez mais força e interesse, inclusive no meio cooperativo.
O citado professor Trebor Scholz, em recente artigo intitulado “Cooperativismo de Dados para tempos pandêmicos” (escrito em coautoria com Igor Calzada, acadêmico sênior na University of Oxford), chamou atenção para desigualdades digitais no acesso a tecnologias de saúde durante a pandemia, destacando a “desigualdade em relação aos dados”.
Ele propôs que o recurso econômico de dados fosse organizado localmente por meio de “cooperativas de dados”, com sistemas de gerenciamento de dados pertencentes aos membros. Assim, os dados só poderiam ser usados seguindo as regras que os membros aprovarem.
Segundo ele, as cooperativas de dados teriam obrigações fiduciárias para com suas partes interessadas e o armazenamento local de dados poderia encorajar as comunidades a tomarem decisões coletivas sobre a coleta e o uso de seus próprios dados. Também observou que as comunidades poderiam usar a receita de seus dados para gerar mudanças sociais positivas, financiando pesquisas públicas, por exemplo.
Nesse contexto, as cooperativas de dados fariam parte do ecossistema da economia digital cooperativa, compondo uma importante vertente do cooperativismo de plataforma.
Outro movimento espontâneo de cooperação com base em tecnologia disruptiva está ocorrendo na chamada “Criptoeconomia”.
A tecnologia blockchain, base da criação do Bitcoin em 2008, despertou interesse em diversos segmentos e evolui num crescente ecossistema, cada vez mais disseminado e robusto.
A criação da rede Ethereum, no ano de 2014, proporcionou um protocolo tecnológico em blockchain revolucionário; uma plataforma digital que além do pagamento de pessoa a pessoa (Bitcoin) possibilitou a implementação de aplicações descentralizadas (dapps) e contratos inteligentes (smartcontracts) em sua blockchain.
O surgimento de “ativos digitais criptografados” (criptoativos) tem gerado uma economia “paralela” e despertado o interesse do mercado tradicional, cada vez mais aderente ao modelo.
As criptomoedas, tokenização de ativos, NFT’s (Non-Fungible Tokens), Smart Contracts e DeFi (Descentralized Finance), somente para citar alguns, são aplicações baseadas em blockchain que estão revolucionando o mercado tradicional e criando uma economia forte que possui uma capitalização de mais de 2 trilhões de dólares.
A criptomoeda é um token (ativo digital) desenvolvido em blockchain. É formada pela geração de blocos oriundos da resolução de problemas matemáticos complexos, possuindo valor (intrínseco e extrínseco) de acordo com sua aplicabilidade. O que cria a criptomoeda é a própria blockchain no processo de mineração.
As unidades de criptomoedas (bitcoin e outras) são geradas e protegidas por meio de um processo algoritmo coloquialmente chamado de “mineração”. O processo de mineração é a base das criptomoedas peer-to-peer (pode ser transferido de pessoa-para-pessoa), pois verifica e organiza as transações. Os mineradores operam as plataformas de mineração (rigs) através de potentes computadores, que geram novos blocos de transações para serem acrescentados ao blockchain da criptomoeda. Em retorno, os mineradores são recompensados com moedas recém cunhadas e taxas de transação.
Por exemplo, para a mineração de criptomoedas em ”proof-of-work” ser rentável, o investimento acaba sendo alto, demandando a utilização de equipamentos com alto poder computacional, além do custo elevado do consumo de energia elétrica. Essa característica acaba elitizando esse tipo de atividade nas mãos de poucos, como empresários que apostam na criação de complexos tecnológicos ou “fazendas de mineração”.
No entanto, programadores e entusiastas têm se organizado unindo suas capacidades computacionais para que, em conjunto, tenham possibilidade de “minerar criptomoedas” (gerar os blocos) em quantidade suficientemente rentável a todos.
Assim, diluem os custos e a participação proporcional nos ganhos, conforme o tamanho da potência computacional (poder de “hashing”) emprestada para esse fim. Esse movimento é denominado na comunidade cripto como “Pools” de Mineração, operando como se fossem “Cooperativas de Mineração”.
Em outros termos, essas “Cooperativas de Mineração” (ou piscinas de mineração) são formadas por grupos que cooperam entre si e concordam em dividir recompensas de bloco (conforme delimitado no algoritmo daquele determinado protocolo blockchain) de acordo com a contribuição de cada participante ao poder de “hashing” da mineração.
Dessa forma, torna-se possível trabalhar com outros mineradores e dispositivos pela Internet, reunindo seus recursos na realização de cálculos complexos para gerar blocos de dados criptográficos. As recompensas pela formação dos blocos na blockchain são distribuídas para cada minerador com base em quanto poder de “hashing” (potência computacional) eles têm em comparação com o conjunto inteiro. Ou seja, a “recompensa” é dividida proporcionalmente entre cada participante, tornando a mineração muito mais viável.
Uma das principais características da tecnologia blockchain é exatamente a descentralização, o que possibilita esse arranjo de vontades e trabalho de mineração em grupo, cada vez mais comum em alguns protocolos (por exemplo: rede Ethereum).
Apesar de ainda não chamar a atenção do movimento cooperativo, os valores de ajuda mútua, responsabilidade, democracia, igualdade, equidade e solidariedade que compõem a identidade cooperativa podem ser observados nesse fenômeno.
A organização desses “mineradores” em uma plataforma cooperativa, estabelecendo as devidas delimitações, ajustes convencionados democraticamente em um estatuto, baseados na doutrina e identidades cooperativas, tem o potencial de ser a evolução desse modelo no universo da “Criptoeconomia”.
Enquanto não surgir o “Trebor Scholz” das “Cooperativas de Mineração Cripto” para inserir a ideia do modelo aos mineradores, a cooperação estabelecida e espontaneamente convencionada nesse caso, tal como nas “Cooperativas de Dados”, também nos demonstra que o caminho para um cooperativismo no século XXI é bastante fértil, exigindo uma forçosa releitura do modelo tradicional.
O Cooperativismo de Plataforma, como primeiro indicador dessa mutação, além de causar profunda disrupção e provocar discussões sobre as estruturas do modelo tradicional, também lança luzes para as organizações cooperativas do futuro que, provavelmente, necessitarão se organizar em torno de uma plataforma tecnológica.
As mudanças impostas por um mundo cada vez mais conectado e digitalizado demandam uma reflexão ao movimento cooperativo. Não só a respeito da necessária adaptação dos modelos existentes, como também para absorver novas atividades que, espontaneamente, afloram características convergentes e próprias da identidade cooperativa.
Referências
- MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
- SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
- SCHOLZ, Trebor. Cooperativismo de Plataforma: contestando a economia do compartilhamento corporativa. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; Editora Elefante; Autonomia Literária, 2016.
- Cooperativas de dados para tempos pandêmicos
- Owning Is the New Sharing
- Gráficos globais de criptomoedas
- Pool de mineração
- Cooperative identity, values & principles