Cooperativismo de plataforma: a democratização dos serviços digitais

Já pensou em um Uber de propriedade dos motoristas? Ou um Airbnb dos locadores de imóveis? E até mesmo um Spotify comandado pelos próprios músicos? Isso já existe e tem nome: Cooperativismo de Plataforma.

O termo foi popularizado em 2014 pelo professor e ativista Trebor Scholz, da The New School, nos Estados Unidos. O professor, além de ter escrito um livro pioneiro sobre cooperativismo de plataforma, é também o idealizador do maior evento mundial sobre o tema: a Conferência Internacional de Cooperativismo de Plataforma. (A Coonecta inclusive organizou a primeira missão brasileira ao evento em 2019)

O que é cooperativismo de plataforma?

Basicamente, cooperativismo de plataforma é um modelo mais democrático e aberto para os serviços digitais, baseado na copropriedade, gestão compartilhada e na doutrina cooperativista.

Explicando de uma forma simples, o cooperativismo de plataforma consiste em empresas de serviços digitais baseadas nos princípios e na constituição jurídica de uma cooperativa. Desta forma, aliam o melhor das plataformas, com o melhor do cooperativismo.

Ou seja, essas cooperativas promovem transações de forma digital, descomplicada e ágil entre seus usuários – algo típico das plataformas. E ao mesmo tempo contam com gestão democrática e propriedade compartilhada, algo típico das cooperativas.

Isso garante maior transparência na gestão e distribuição mais igualitária da riqueza gerada pelas cooperativas de plataforma.

Além disso, aliar o cooperativismo ao modelo de negócio de plataforma corrige uma série de distorções das plataformas convencionais de negócios. Se analisarmos de perto as plataformas, sua forma de atuação, o efeito de rede e a forma como crescem, veremos que faz muito sentido elas se constituírem na forma de cooperativas. Vejamos…

Contexto das cooperativas de plataforma

Crise econômica, agravo do desemprego e busca por novas opções de trabalho formaram o cenário ideal para o sucesso das plataformas digitais tradicionais.

Isso porque as plataformas têm uma característica bem peculiar: ao desenvolverem um ambiente confiável para a intermediação de produtos e serviços, elas criam as condições para a entrada de novos participantes no mercado em que atuam.

Exemplos? Pense no Airbnb que permitiu a entrada de novos quartos e propriedades no mercado hoteleiro. Ou no Uber, que criou as condições para a atuação de motoristas não profissionais.

Por conta dessa característica, ser um fornecedor dessas plataformas se tornou uma alternativa de renda extra para muitas pessoas. Afinal, é bem mais fácil entrar em mercados desregulados, onde as barreiras de entrada são mínimas.

Plataformas mercantis têm se consolidado e gerado reclamações

Economia dos bicos e as plataformas

Essa expansão das plataformas tem fomentado a chamada “economia dos bicos”, que em países em desenvolvimento, como o Brasil, tem um terreno fértil para se desenvolver.

Segundo o IBGE, 7 em cada 10 novos empregos gerados no Brasil são informais. Muitos acreditam que, ao trabalhar nestas plataformas, se tornam empreendedores e autônomos.

O efeito adverso disso é que os prestadores de serviços das plataformas não têm os mesmos direitos que trabalhadores formais, como limite de horas trabalhadas, horas extras, seguridade social, entre outros benefícios. O impacto negativo dessas plataformas já conta até com um nome popular: “uberização do trabalho”.

Outras desvantagens das plataformas tradicionais, segundo especialistas como o consultor americano e advisor da Coonecta, Travis Higgins, são as demissões arbitrárias, vigilância excessiva sem direito de se desconectar, inseguridade de renda, entre outras. Ou seja, a alegada autonomia ao trabalhar nesses setores não passa de uma ilusão.

Em contraponto às plataformas tradicionais, o cooperativismo de plataforma espera criar oportunidades para dar voz ao usuário (transparência, influência e importância), mais participação e maior renda para os produtores.

A ideia é acompanhar a evolução do digital, mas de forma democrática, solidária, com base em copropriedade e na gestão compartilhada.

No entanto, os desafios são grandes. O Brasil tem uma forte cultura de cooperativismo, especialmente nos setores financeiro e agropecuário, mas ainda precisa levar essa cultura cooperativista para o universo digital.

No webinar abaixo, Travis explica em detalhes o contexto do surgimento das plataformas cooperativas e seu modelo de negócio. Vale assistir!

Plataforma de valor compartilhado com a comunidade

É no cenário de precarização do trabalho que as cooperativas de plataforma entram como uma alternativa viável, ainda mais considerando que o maior gerador de valor de uma plataforma é a sua própria comunidade de usuários.

Isso mesmo. O tal efeito de rede, que produz a valorização exponencial dessas plataformas, é o valor gerado pela própria comunidade participante da plataforma. Vamos entender isso no detalhe.

As plataformas são em sua essência intermediadoras de produtos, serviços e moedas sociais. E como intermediadoras, elas são irrelevantes sem sua comunidade de usuários. Já imaginou um Uber sem motoristas ou sem passageiros?

O efeito de rede

É por isso que um dos principais livros sobre o tema da atualidade, “Plataforma: a revolução de estratégia”, afirma que o maior gerador de valor das plataformas é o efeito de rede.

Esse fenômeno pode ser definido como “o impacto exercido pela comunidade de usuários de uma plataforma sobre o valor criado para cada um deles, individualmente”.

E quem é em grande parte responsável por gerar esse efeito de rede? A própria comunidade de usuários!

Não parece lógico que se o maior gerador de valor é a comunidade, ela deveria receber algo mais em troca? E que tal se esse algo mais fosse a propriedade compartilhada? É este um dos grandes diferenciais do cooperativismo de plataforma!

Vamos entender isso na prática?

A seguir, vamos conhecer alguns exemplos de cooperativas de plataforma.

FairBnB: comunidade recompensada

No Brasil, o Cooperativismo de Plataforma ainda está em desenvolvimento, mas em outros países já há cases de sucesso, como o FairBnB, que é uma cooperativa de hospedagem.

A cooperativa de plataforma pertence não aos investidores, mas àqueles que a usam e são afetados pelo seu uso: anfitriões, hóspedes, convidados e empresários locais.

O FairBnB fornece um espaço onde os membros da comunidade podem se reunir e decidir juntos como a plataforma será desenvolvida na sua vizinhança.

E ainda trabalham com o governo local para promover regulamentações que incentivem o turismo sustentável.

Para reconstruir a comunidade, os lucros – ou melhor, as sobras – são reinvestidos em projetos sociais que combatem os efeitos negativos do turismo.

Os moradores votam para apoiar os projetos que querem ver em seus bairros, como cooperativas de consumo, locais de lazer, parques infantis, projetos verdes e cafés comunitários.

Criado e governado por cidadãos, o FairBnB mantém as sobras nas comunidades e garante que as decisões sejam tomadas para o bem da região, e não para sua exploração.

A cooperativa atua principalmente na Holanda, Itália, Alemanhã e Espanha, mas está dase de expansão para outros países.

Da pesquisa em saúde ao streaming de música

Existem muitos outros exemplos de Cooperativismo de Plataforma. O Consórcio de Cooperativismo de Plataforma tem aproximadamente 350 iniciativas mapeadas no mundo todo.

A Ampled é uma espécie de "Spotify em forma de cooperativa"

Listamos abaixo algumas cooperativas mais maduras que você precisa conhecer:

  • Stocksy United: é uma das cooperativas de plataforma mais desenvolvidas atualmente. Na prática, é um banco de vídeos e imagens de propriedade compartilhada dos próprios artistas.
  • Resonate e Ampled: ambas são um “Spotify em forma de cooperativa”. Essas plataformas de streaming de música são de propriedade dos próprios artistas, com remunerações superiores ao Spotify por música tocada.
  • Savvy: é uma cooperativa norte-americana de insights em pesquisas de saúde centradas no paciente. O interessante da Savvy é que no início de 2020 a cooperativa recebeu aporte de um fundo de capital de risco – sim, nos Estados Unidos isso é possível para uma cooperativa!

Caso queira conhecer mais iniciativas de cooperativismo de plataforma, vale acessar este curso gratuito e bem completo da Coonecta.

Cooperativismo 2.0

O Cooperativismo de Plataforma tem ainda grandes desafios pela frente. É preciso mesclar os universos de tecnologia e cooperativismo.

Seu desenvolvimento também demanda uma maior transparência na estrutura de governança das plataformas, o que vai na contramão das práticas financeiras em Startups.

Gideon Rosenblatt escreveu para a revista norte-americana Yes Magazine sobre a urgência e os desafios para o surgimento de novas cooperativas nos setores de tecnologia – como um “Cooperativismo 2.0”. No texto, ele afirma:

“Estamos em uma corrida que coloca a explosão da inteligência artificial e da automação contra nossa capacidade de expandir rapidamente a propriedade dos motores que impulsionam essa revolução tecnológica. Desenvolver as cooperativas de plataforma de sua forma incipiente em um novo e próspero setor é um passo crítico em direção a um futuro econômico, justo e promissor”. Para ler texto na íntegra em inglês, clique aqui.

Para passar por esses desafios e incentivar as cooperativas a mergulhar neste universo, há alguns projetos já em prática, como o Consórcio de Plataformas Cooperativas, liderado por Trebor Scholz.

As grandes empresas já estão atentas à novidade. A Fundação Google, por exemplo, financiou o Consórcio de Scholz com 1 milhão de dólares. O recurso será utilizado para construir colaborativamente o Platform Co-op Development Kit, uma espécie de repositório de ferramentas para ajudar pessoas interessadas em criar plataformas digitais cooperativas.

Além disso, o Kit dará suporte a cooperativas já existentes em de diversos países.

Como diz Trebor Scholz em seu livro Cooperativismo de Plataforma, “não podemos perder mais tempo”. Há uma promessa de proteções sociais, acesso e privacidade que está distante de acontecer; Por isso, é preciso nos esforçarmos para esta conquista.

“Por meio do nosso esforço coletivo podemos construir o poder político para um movimento social que irá dar existência a essas ideias”, afirma o ativista.

As cooperativas de plataforma são potencializadas quando existe um ecossistema de inovação cooperativista. Se você quer fazer parte desse ecossistema e apoiar o empreendedorismo cooperativista, faça parte da comunidade do RadarCoop!

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Gustavo Mendes
Gustavo Mendes
Cofundador da Coonecta, especialista em curadoria de conteúdo para educação corporativa e marketing de conteúdo, palestrante e mentor em: inovação, cooperativismo de plataforma, cooptechs e empreendedorismo cooperativo