A promulgação da Emenda Constitucional nº 132, de dezembro de 2023, e, mais recentemente, da Lei Complementar nº 214, em janeiro de 2025, traz mudanças significativas para o sistema tributário brasileiro. A reforma tributária do consumo afeta diretamente todos os setores econômicos e visa modernizar o modelo de tributação sobre o consumo no país.
O que a reforma tributária do consumo representa?
O pilar da reforma é a instituição do novo “IVA dual” no Brasil, representado pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios, e pela Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS, de competência da União.
Como se sabe, os dois novos tributos, IBS e CBS, de legislação unificada e idêntica, substituirão nos próximos anos as atuais contribuição ao Programa de Integração Social (PIS) e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (COFINS), de competência da União, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência dos estados e do Distrito Federal, e o Imposto sobre Serviços (ISS), de competência dos municípios e do Distrito Federal.
Tributos no cooperativismo
O setor de cooperativas de créditos terá importantes alterações com a Reforma Tributária. Atualmente, quanto à incidência sobre o consumo, o setor se sujeita aos tributos:
- PIS (Programa de Integração Social) e COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social): PIS e COFINS, à alíquota unificada de 4,65%, sem direito a créditos (art. 8º, I, da Lei nº 10.637/02, e art. 10, I, da Lei nº 10.833/03). São excluídos das receitas tributáveis os “ingressos decorrentes do ato cooperativo” (art. 30 da Lei nº 10.865/04), além de despesas de intermediação, câmbio, captação e outras próprias da atividade financeira (art. 3º, § 6º, da Lei nº 9.718/98);
- Imposto Sobre Serviços (ISS): ISS, às alíquotas entre 2% e 5%, sobre as prestações de serviços não caracterizadas como atos cooperativos, o que muitas vezes gera divergências quanto à caracterização do que seriam “atos cooperativos” não tributáveis conforme legislações municipais diferentes e entendimentos diversos dos Fiscos municipais;
- Imposto sobre Operações Financeiras (IOF): IOF, imposto também de competência da União Federal, que incide sobre operações financeiras, de crédito e seguros. Esse imposto será extinto ou reduzido, no caso de operações de seguro e câmbio, e deverá continuar vigente para as demais operações financeiras, ao menos até nova regulamentação.
Impactos da falta de uma regulamentação adequada ao cooperativismo
Como se vê, a atual legislação de regência de cada um dos tributos tem tratado da incidência ou não sobre os rendimentos auferidos pelas sociedades cooperativas.
E isso ocorre muitas vezes de forma casuística e não uniforme, sem a edição de norma geral tributária, na forma de lei complementar, exigida pelo art. 146, III, “a”, da Constituição, para regulamentar o “adequado tratamento tributário do ato cooperativo”.
A ausência dessa adequada regulamentação, com o casuísmo das legislações e suas interpretações, desencadeou, em alguns casos, litígios prolongados.
Por exemplo, após entendimento sumulado no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que “incide o imposto de renda sobre o resultado das aplicações financeiras realizadas pelas cooperativas” (Súmula nº 216/STJ), a jurisprudência foi novamente provocada para ressalvar esse entendimento às cooperativas de crédito.
Somente depois de algum tempo, consolidou-se nos Tribunais e no próprio Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) que as aplicações financeiras de cooperativas de crédito constituem atos cooperativos típicos.
Em paralelo, no regime atual, a introdução da sistemática de exclusão de determinadas receitas da base de cálculo das contribuições, ao invés de uma cláusula geral de exclusão referente ao ato cooperativo, foi validada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em novembro de 2024 (RE 599.362/RJ, Tema nº 323 de Repercussão Geral).
Na ocasião, o Plenário decidiu à unanimidade que:
- A exigência constitucional de adequado tratamento tributário dos atos cooperativos não alcança a cooperativa como um todo, mas apenas e objetivamente os atos cooperativos;
- A Constituição não conferiu imunidade tributária, isenção ou hipótese de não incidência de tributos sobre atos cooperativos, pressupondo, diversamente, a possibilidade de sua tributação, cabendo à lei tributária dispor sobre a questão.
Ato Cooperativo: definição pendente
Vale lembrar, todavia, que a definição cabal das características e da abrangência do conceito de “ato cooperativo”, a merecer o tratamento adequado previsto na Constituição, ainda será dada pelo STF no julgamento dos Temas nº 536 e nº 516 de Repercussão Geral, em data futura.
Especificamente nesses julgamentos, o STF definirá os contornos constitucionais do que vem a ser “ato cooperativo” e “receita da atividade cooperativa”, conforme previsão do art. 146, inciso III, da CF/1988.
Inclusive, vão definir se tais conceitos abrangem determinadas operações realizadas com terceiros, quando limitadas ao contexto de atuação e finalidades das cooperativas e em prol dos associados.
Portanto, é possível que o entendimento atual acerca do que constitui um “ato cooperativo” para fins da incidência da contribuição ao PIS, da COFINS e do ISS seja modificado.
Em um momento de transição para o novo modelo tributário, poderá até mesmo surgir um conceito mais amplo de “ato cooperativo” do que aquele atualmente empregado, pela jurisprudência administrativa e judicial, com base apenas na Lei nº 5.764/71 (Lei das Cooperativas).
Reforma Tributária do Consumo e o futuro tributário das cooperativas
Com a Reforma Tributária, a previsão constitucional de lei complementar para estabelecer o adequado tratamento tributário do ato cooperativo foi mantida para os novos tributos criados, o IBS e a CBS.
Além disso, a Emenda nº 132/2023 também previu que as sociedades cooperativas serão destinatárias de regime tributário específico e optativo, com vistas a assegurar a sua competitividade.
Para isso, cabe à lei complementar definir inclusive “as hipóteses em que o imposto não incidirá sobre as operações realizadas entre a sociedade cooperativa e seus associados, entre estes e aquela e pelas sociedades cooperativas entre si quando associadas para a consecução dos objetivos sociais” (art. 156-A, § 6º, III, “a”, da Constituição).
De todo modo, ainda que caiba à lei complementar regulamentar essa proposição, tem-se agora no texto constitucional a previsão de que o chamado “ato cooperativo” deve caracterizar uma hipótese de não incidência tributária, constitucionalmente qualificada.
Regimes específicos para cooperativas de crédito
Com o texto final da Lei Complementar nº 214/25, as cooperativas de crédito poderão optar por regimes específicos de IBS e CBS.
De um lado, poderão optar por regime específico previsto para os serviços financeiros, nos quais as cooperativas de crédito foram incluídas (art. 183, III, da Lei Complementar).
O regime para serviços financeiros previsto na regulamentação comporta funcionamento semelhante ao atual de tributação do PIS e da COFINS, prevendo que a base de cálculo do setor será composta pelas receitas dos serviços financeiros com as respectivas deduções próprias ao funcionamento de cada entidade.
Não obstante essa similitude, há uma diferença relevante, pois, ao contrário do que ocorre com PIS e COFINS, foi assegurado o direito ao aproveitamento de créditos de IBS e CBS nas operações entre cooperativas e cooperados sujeitos ao regime regular de tributação (art. 272 da Lei Complementar).
Da mesma forma, essa opção pelo regime específico do setor financeiro pode ser vantajosa em alguns casos para os tomadores de operações de créditos que não sejam associados, e que poderão apropriar créditos de IBS e CBS devidos na operação. Isso garante que os tributos pagos em etapas anteriores possam ser compensados, evitando custos adicionais e promovendo a eficiência fiscal.
De outro lado, as sociedades cooperativas poderão optar por regime específico do IBS e da CBS no qual ficam reduzidas a zero as alíquotas desses tributos nas operações realizadas entre a cooperativa e seus cooperados, e também quando a cooperativa de crédito fornece bem ou serviço a associado sujeito ao regime regular do IBS e da CBS, inclusive cobrados mediante tarifas e comissões (art. 271 da Lei Complementar).
Essa medida reconhece a especificidade do “ato cooperativo interno” e do fornecimento de serviços financeiros aos associados, em que produtos são distribuídos de várias formas.
Em ambos os casos, a flexibilização trazida pela Lei Complementar permitirá que as cooperativas escolham o regime tributário mais adequado às suas operações, respeitando as particularidades do setor.
Reforma Tributária do Consumo e a essência do cooperativismo
Por fim, o art. 6º, X e XI, da Lei Complementar, estabelece a não incidência de IBS e CBS sobre a destinação e reversão de fundos obrigatórios, como o Fundo de Reserva e o Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (FATES), assim como sobre a distribuição das sobras aos cooperados, preservando a essência do modelo cooperativista e a segurança jurídica nessas operações.
A despeito da complexidade operacional e interpretativa do período de transição para o novo sistema, as alterações trazidas pela regulamentação da reforma tributária trarão diversas implicações práticas para as cooperativas de crédito.
A confirmação da redução da alíquota zero de IBS e CBS para as “operações internas”, assim como a flexibilização de regimes, podem representar oportunidades de atuação ainda mais eficiente e competitiva das cooperativas de crédito no mercado.
Afinal, diferentemente das demais pessoas jurídicas, as cooperativas não têm como objetivo principal auferir lucro, mas sim buscar a cooperação entre os seus associados por meio de suas respectivas contribuições, de bens ou serviços, para o exercício da atividade econômica para as quais constituídas.
Dessa forma, cabe ao legislador tributário reconhecer o papel diferenciado que essas instituições desempenham na economia
Ao mesmo tempo, é fundamental que as cooperativas de crédito se adequem às novas disposições legais, revisando seus processos internos e capacitando suas equipes para garantir o cumprimento das obrigações tributárias e o aproveitamento mais eficiente dos regimes previstos na reforma tributária do consumo.
Nota: As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva de seu autor e não refletem necessariamente a posição da Coonecta. Valorizamos a diversidade de perspectivas e o debate aberto sobre o cooperativismo.