Em 30 de abril de 2016, uma organização descentralizada chamada The DAO lançou o financiamento inicial, como uma espécie de IPO, para uma plataforma de compartilhamento chamada Slack.it. Visando concorrer contra o AirBNB, o Slack.it amealhou mais de 150 milhões de dólares – um sucesso sem precedentes para esse modelo.
O desempenho muito além das expectativas gerou otimismo quanto ao futuro do formato de DAOs (Decentralized Autonomous Organizations, ou Organizações Autônomas Descentralizadas). Mais de 11 mil pessoas investiram no projeto, que parecia promissor ao promover a posse descentralizada e uma operação automatizada descrita em código.
Após um mês de operação, contudo, veio o desastre. Hackers descobriram uma falha de segurança no código do Slack.it e drenaram os recursos, estocados na criptomoeda Ether. Por causa da natureza participativa do projeto, as correções necessárias precisaram ser aprovadas pelos membros investidores. A essa altura, já era tarde demais.
A retomada
O problema do Slack.it condenou o formato de DAO à desconfiança, mesmo entre os entusiastas das criptos. De lá pra cá, entretanto, o modelo tem ocupado novos espaços, ganhado aplicabilidades e estreitado laços com o cooperativismo.
A classificação de DAOs como cooperativas surge como uma solução regulatória dentro do arcabouço legal dos Estados Unidos. A advogada brasileira Jacqueline Radebaugh, que atua desde 2017 com cooperativas e empreendimentos sociais nos Estados Unidos, é uma das mentoras do processo de amadurecimento das DAOs como cooperativas.
Jacqueline afirma que, para as DAOs, “o modelo cooperativo faz sentido na maioria dos casos, mas não em todos. Faz sentido quando o objetivo da DAO é beneficiar os participantes ativos, e não investidores, ou a DAO como entidade separada dos membros”.
Leia, ao fim, a entrevista completa que fizemos com a advogada. Antes, vamos entender melhor o que é uma DAO e como ela se conecta com a lógica cooperativista.
Afinal, o que é uma DAO?
Embora a DAO que deu origem ao Slack.it tenha sido o primeiro grande projeto a colocar o modelo em evidência, o conceito é desenvolvido desde 2005. A grande virada que permitiu a materialização das DAOs foi o estabelecimento de contratos inteligentes, os smart contracts.
Quando a rede Ethereum surgiu, dando suporte à criptomoeda Ether, também permitiu que contratos inteligentes fossem registrados via blockchain. Descentralizada, a rede blockchain opera em diversos computadores dos usuários de Ethereum, registrando a validade de todas as transações feitas na plataforma.
Os contratos inteligentes possibilitaram a difusão das DAOs, já que elas têm operação automatizada registrada em código. Assim, não há a necessidade de envolvimento humano na execução das tarefas, que são descritas na programação da organização. Embora a rede Ethereum seja a mais popular para o registro dos smart contracts, outras redes também podem ser utilizadas.
As DAOs são financiadas através da compra de tokens – uma espécie de moeda interna própria -, que dão direitos a votos nas tomadas de decisões. É algo semelhante à oferta pública inicial de ações de uma empresa que está abrindo seu capital, mas sem a estrutura verticalizada de gestão. A DAO é gerida democraticamente, através da participação dos donos de tokens.
Em resumo, Jacqueline elucida: “DAOs são organizações informais com presença virtual (às vezes exclusivamente; às vezes com impactos fora da internet, mas não necessariamente) que adotam princípios de governança compartilhada entre os membros”.
As DAOs e o cooperativismo: qual a relação?
Para Jacqueline Radebaugh, existe uma sobreposição entre valores e princípios entre DAOs e cooperativas:
“Como grupo de pessoas com o mesmo objetivo, DAOs funcionam como um conjunto de práticas de governança (membros têm direito de participar nas decisões de forma equitativa), como um conjunto de valores (adotam princípios de open source), uma maneira de administrar uma empresa (de forma descentralizada e autônoma).”
Nos Estados Unidos, apenas dois estados possuem regulação específica para as DAOs, e uma saída tem sido classificá-las como LCAs (Limited Cooperative Associations, ou Sociedade Cooperativa Limitada).
O modelo cooperativo traz consigo um importante atrativo: benefícios fiscais. Mas não só: “uma outra vantagem é que cooperativas, especialmente as de consumo, não precisam manter muitas informações pessoais dos membros, o que é de interesse para DAOs com membros anônimos”, elucida a especialista.
Patronagem: o grande elo
O conceito-chave que interliga cooperativas e DAOs, acrescenta a advogada, é a patronagem, que é a forma com que os membros se relacionam à cooperativa. A distribuição do lucro entre os membros, característica inata das cooperativas, é uma representação. Ela ainda acrescenta:
“Em uma cooperativa de trabalho, onde os membros/sócios são trabalhadores, a patronagem pode ser definida como número de horas de trabalho, ou projetos desenvolvidos pelos trabalhadores; em uma cooperativa de consumo, a patronagem é o consumo (compra) pelos membros de produtos ou serviços vendidos pela cooperativa.”
Um exemplo de DAO constituída como cooperativa é a Employment Commons, que negocia coletivamente planos de saúde e outros benefícios a trabalhadores sem registro formal.
“Os membros trabalham em várias empresas e a folha de pagamento dos membros passa pela DAO, e a DAO negocia benefícios para eles”. Segundo Jacqueline, os usuários são “como membros em uma cooperativa de consumo”.
Confira a entrevista completa com a advogada Jacqueline Radebaugh
Veja abaixo a íntegra da entrevista que a advogada Jacqueline Radebaugh concedeu à Coonecta, explicando a relação entre DAOs e o cooperativismo. Boa leitura!
De forma resumida, como você explica as Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs)?
De forma simples, DAOs são organizações informais com presença virtual (às vezes exclusivamente; às vezes com impactos fora da internet, mas não necessariamente) que adotam princípios de governança compartilhada entre os membros. Estes grupos funcionam de forma descentralizada: não têm “patrão” ou “diretor”; todos os membros têm autonomia para tomar decisões e executá-las. Mas os membros não têm autoridade inerente. A autoridade de cada membro é resultado das decisões tomadas conjuntamente pelo grupo. Isso não significa que todo mundo tenha que participar sempre; esses grupos funcionam na base de colaboração voluntária: cada um pode fazer uma proposta para tomar ações ou decisões, e se os votos a favor forem mais que os votos contra, a proposta é aprovada.
Na sua visão, o quão revolucionárias são as DAOs?
Eu não tenho uma resposta brilhante para essa pergunta, mas algumas ideias. Primeiramente, cooperativas tradicionais existem quase exclusivamente no mundo real, fora da internet. Cooperativas de plataforma talvez estejam no espectro entre cooperativas e DAOs.
A maior inovação que as DAOs trazem, na minha opinião, é a habilidade de adotar uma estrutura sem hierarquia. Decisões, tanto estratégicas como procedurais, são tomadas de forma compartilhada, e ações de implementação de decisões também acontecem de forma compartilhada pelos participantes/membros.
Como organização, a DAO não tem um cérebro ou autoridade central que decide: as prioridades da DAO e a forma de trabalho dos membros são decididas pelos membros. Um aspecto interessante que vem dessa inovação é o fato que os membros são recompensados tanto pelas tarefas que cada um realiza, mas também pela valorização da empresa (causada pelo sucesso resultante dos esforços do coletivo).
As DAOs não são tão recentes assim, existem desde 2016. Como elas surgiram e por que voltaram à tona agora, ainda mais fortes?
A primeira DAO, “The DAO”, foi formada no Ethereum Network in 2016, mas, na verdade, de acordo com Wulf A. Kaal, o conceito de DAO foi publicado pela primeira vez em 2005 e depois no começo dos anos 2010, como Decentralized Autonomous Corporations (DACs), Corporações Autônomas Descentralizadas, proposta por Daniel Larimer, CTO da EOS, em 2013.
Nessa iteração, DACs seriam uma variação de corporações, onde tokens representariam ações da corporação, e os acionários receberiam dividendos de acordo com os serviços prestados por eles para a DAC. Nos anos seguintes, Vitalik Buterin publicou três artigos sobre o conceito de DAC, antes de criar a Ethereum Foundation.
DAOs têm operado fora do radar desde 2016 e eu acredito que elas sejam um dos motivos da explosão de criptomoedas nos últimos anos e NFTs em 2020 – sem as contribuições dos participantes em DAOs, eu não sei se o sucesso que temos visto em blockchain teria acontecido.
Eu acredito que estes grupos informais estão aparecendo nos radares por causa do sucesso dos projetos desenvolvidos por eles e eu acredito que com o sucesso e normalização do uso de criptomoedas pelas economias locais, regionais, nacionais, e internacionais vai catapultar as DAOs para um outro nível, no qual eles vão ter que virar organizações formais/legais.
Também suspeito que a pandemia contribuiu para a visibilidade das DAOs por conta da habilidade natural de incorporar trabalhadores e contribuidores remotos/nômades. Numa economia onde trabalhadores são incentivados a trabalhar de casa (independentemente de onde estejam localizados), a existência de entidades que facilitam o trabalho e a reunião de pessoas com os mesmos valores, objetivos, e procurando os mesmos incentivos financeiros, é essencial.
Em seu trabalho nos EUA, você tem ajudado algumas DAOs informais em sua transição para uma entidade legal formalizada, e algumas delas têm optado pelo modelo cooperativo, certo? Na sua visão, esse é o melhor caminho? Por quê?
É verdade, a maioria das DAOs que procuram meus serviços têm escolhido o modelo cooperativo como estrutura jurídica. A primeira ideia de formar uma DAO usando o modelo cooperativo veio do pessoal da Opolis, que formou a Employment Commons, em 2019, com os meus colegas Yev Muchnik e Jason Wiener, adotando o modelo de LCA (Limited Cooperative Association ou, em português, Sociedade Cooperativa Limitada) que aqui, nos EUA, é uma combinação do modelo cooperativo com o modelo de sociedades de responsabilidade limitada.
Neste momento, eu acho que o modelo cooperativo faz sentido na maioria dos casos, mas não em todos. Faz sentido quando o objetivo da DAO é beneficiar os participantes ativos, e não investidores, ou a DAO como entidade separada dos membros. Nos Estados Unidos, o modelo cooperativo tem tributação especial baseada em patronagem e distribuição de lucros por dividendos de patronagem – quando lucros gerados pelos membros são distribuídos para os membros, somente os membros pagam imposto de renda sobre esse valor. A cooperativa é tecnicamente isenta de imposto sobre esses lucros se eles forem distribuídos aos membros, e tem isenções para títulos e valores mobiliários da cooperativa que não são encontrados em outros modelos empresariais. DAOs que funcionam como cooperativas e adotam o modelo cooperativo podem beneficiar deste tratamento.
Outra vantagem é que cooperativas, especialmente as de consumo, não precisam manter muitas informações pessoais dos membros, o que é de interesse para DAOs com membros anônimos – apesar de esse assunto não ser totalmente resolvido por nenhuma forma jurídica, incluindo o modelo cooperativo.
Em resumo, como explicar a relação das DAOs com o cooperativismo?
Dependendo do país ou sistema jurídico, cooperativas podem ser:
- (i) tipos de entidade legais (como corporações, sociedades simples, sociedade empresária limitada, etc.) definidas na lei;
- (ii) uma maneira de administrar empresas;
- (iii) um conjunto de práticas de governança;
- ou (iv) um conjunto de valores.
As DAOs podem ser vistas da mesma forma. Nos Estados Unidos, dois estados (Wyoming e Vermont) adotaram leis para reconhecer DAOs como entidades legais. Como grupo de pessoas com o mesmo objetivo, DAOs funcionam como um conjunto de práticas de governança (membros têm direito de participar nas decisões de forma equitativa), como um conjunto de valores (adotam princípios de open source), uma maneira de administrar uma empresa (de forma descentralizada e autônoma).
Eu acredito que os dois conceitos se sobrepõem quando se trata de valores e princípios, e o modelo jurídico da LCA combina esses conceitos.
Do ponto de vista jurídico, esse modelo oferece, como o nome diz, responsabilidade limitada aos participantes/associados, e também flexibilidade de adoção de normas internas. Ao mesmo tempo que a lei das LCA é flexível, ela também coloca princípios cooperativos no DNA dessa forma legal. Por exemplo: os sócios/membros têm direito a pelo menos um voto por pessoa, e podem adotar votos baseados em patronagem.
O conceito de patronagem é um dos fatores mais distintivos das cooperativas em relação a outras formas empresariais, e, para mim, é um dos conceitos que justifica a sobreposição de DAOs e cooperativas.
Patronagem é um conceito que traz pelo menos dois aspectos muito importantes: de um lado, patronagem é a atividade dos membros (ou classes de membros), com relação à cooperativa. Por exemplo: em uma cooperativa de trabalho, onde os membros/sócios são trabalhadores, patronagem pode ser definida como número de horas de trabalho, ou projetos desenvolvidos pelos trabalhadores; em uma cooperativa de consumo, patronagem é o consumo (compra) pelos membros de produtos ou serviços vendidos pela cooperativa.
O segundo aspecto deste conceito é o fato de que a atividade do membro gera lucros para a cooperativa. Por exemplo: na cooperativa de consumo, os lucros da atividade da cooperativa existem como resultado da atividade do membro. O objetivo da cooperativa não é reter lucro para si, para a entidade, mas sim distribuir este lucro (dividendos de patronagem) para os membros, proporcional à atividade do membro (pro rata). Ganho de capital e outros ganhos que não resultam da ação dos membros não são distribuídos para os membros – esses são retidos na cooperativa.
O que eu tenho constatado é que esse conceito de patronagem também é parte integral da maioria das DAOs que funcionam na base das contribuições dos membros, e são bem parecidas com as cooperativas de trabalho. Geralmente, o objetivo das DAOs não é gerar lucros para a empresa ou para acionários e investidores. O que se busca é levantar fundos entre os participantes, desenvolver produtos ou projetos, e distribuir lucros (ou tokens) gerados pelos esforços do grupo para os participantes, proporcional à atividade de cada participante.
Dessa forma, eu tenho visto DAOs adotarem o uso de tokens como unidade de medida para calcular participação – e também para identificar membros dar direitos de governança. O mesmo pode ser dito sobre o modelo de cooperativas de consumo e DAOs cujos membros beneficiários são consumidores dos produtos e serviços da DAO; e também no caso de cooperativas de produção, como cooperativas de agricultura no Brasil, e DAOs de produção. Por exemplo: uma DAO que é formada de artistas e cujo objetivo é vender as artes dos seus membros.
Poderia citar exemplos de DAOs que foram constituídas como cooperativas e explicar como elas atuam?
Employment Commons: é uma DAO que oferece benefícios para trabalhadores que não são empregados (o equivalente a sem carteira registrada). Com um volume alto de membros, a DAO pode negociar com seguros de saúde, e outros benefícios para pessoas que trabalham como autônomos e que não teriam benefícios sem um empregador. Os membros trabalham em várias empresas e a folha de pagamento dos membros passa pela DAO, e a DAO negocia benefícios para eles. Os membros são considerados consumidores dos serviços da DAO (como membros em uma cooperativa de consumo).
Song A DAO: e uma DAO musical. Um artista, Jonathan Mann, tem escrito e gravado uma música por dia por mais de 13 anos. Ele decidiu tokenizar o direito das músicas dele e transferir os tokens e direitos das músicas para a DAO. Para adquirir as músicas tokenizadas, indivíduos compram NFTs. Comprando NFTs, eles podem virar membros da DAO, e virando membros, eles podem ter direito de votar em como usar os fundos da DAO, receber royalties, e outros benefícios econômicos.
SporkDAO: A SporkDAO é parte do mesmo grupo da Employment Commons. SporkDAO é uma DAO social. A DAO organiza eventos com outras DAOs e quando alguém atende um evento, recebe tokens $SPORK. Pessoas que recebem tokens podem virar membros da SporkDAO e quando a DAO receber lucros, esses lucros serão distribuídos para os membros, dependendo de quanto os membros participam nos eventos (com base em patronagem, um termo integral do modelo cooperativo).
Poderia traçar um panorama de quais stakeholders estão hoje ativamente envolvidos nos debates sobre o desenvolvimento das DAOs? Destes, as entidades do cooperativismo têm hoje um papel relevante?
Esta questão identifica astutamente um aspecto do desenvolvimento das DAOs que eu tenho observado: observadores, participantes, contribuintes do movimento das DAOs têm identificado as similaridades entre DAOs e cooperativas, mas eu acredito que, neste momento, nos Estados Unidos, não acontece o mesmo do lado dos atores do cooperativismo.
Existem alguns pesquisadores e atores de tração significante na internet que têm um pé de cada lado do assunto, além da minha equipe, especialmente Yev Muchnik (@MuchnikYev), por exemplo, Nathan Schneider (@ntnsndr), Austin Robey (@austinrobey_), o pessoal do The Ready (especialmente Sam Spurlin @samspurlin e Tanisi Pooran (@tanisi_pooran), que são consultores de desenvolvimento organizacional), The New School, DisCO Coop, e organizações envolvidas com cooperativismo de plataforma em general, porque essas cooperativas são nativas ou adaptadas à internet.
A maioria das organizações de peso focadas em cooperativas nos Estados Unidos ainda não estão envolvidas com DAOs, ou não de uma forma visível.
Perfil
Jacqueline Radebaugh é uma advogada e consultora empresarial comprometida com o avanço da equidade racial por meio do empreendedorismo social, da economia compartilhada e de estratégias de desenvolvimento comunitário e econômico sustentáveis.
Formada pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, Jacqueline começou sua carreira jurídica em 2005, como consultora tributária, em São Paulo. Depois, atuou com organizações sem fins lucrativos na França e na Suíça. Desde 2017 tem trabalhado com cooperativas, startups, e empreendimentos sociais nos Estados Unidos, junto ao escritório Jason Wiener.
Jacqueline colabora com incubadoras de cooperativas, organizações comunitárias e instiga conversas sobre community land trusts e outros modelos de propriedade e patrimônio compartilhado. Ela se concentra em modelos de governança democrática, cooperativas, e DAOs e sua sobreposição com princípios cooperativos.
Ela também coleciona diversos títulos acadêmicos: tem mestrado em Sociologia pela Ecole Pratique des Hautes Etudes de La Sorbonne, mestrado em Direito Público e Ciências Políticas pela Ecole de Droit de La Sorbonne, e LLM pela University of Texas School of Law.