O universo do empreendedorismo digital tem se voltado cada vez mais à criação de plataformas baseadas nos conceitos da economia compartilhada. Exemplos não faltam. São plataformas digitais o Uber, o Rappi, o iFood, a Netflix, o Spotify, dentre milhares de outras.
Esse modelo de negócio, que faz parte da gig economy, cria um sem número de oportunidades, mas também gera uma série de distorções que a sociedade tem começado a cobrar. Exemplo disso são as cada vez mais recorrentes paralisações de motociclistas e ciclistas entregadores nas grandes cidades. São trabalhadores que têm visto sua mão de obra ser cada vez mais explorada sem que uma contrapartida razoável seja oferecida.
O movimento cooperativista, baseado em seus princípios fundamentais, tem se movimentado para criar alternativas a essas big techs que monopolizam cada vez mais mercados. Para entender como funciona a ideia de plataformas de propriedade compartilhada é importante entender como as startups são, em geral, criadas.
Como nasce uma startup
Invariavelmente, a criação de plataformas digitais segue um modelo básico. Uma pessoa ou um grupo de pessoas tem uma ideia e cria uma empresa. Na linguagem das startups esses são os chamados founders da iniciativa.
Neste primeiro momento de criação da startup este grupo detém 100% da iniciativa. No entanto, essa é uma realidade que tende a mudar com o tempo. Afinal, startups são criadas para atrair investidores interessados em adquirir participação nos negócios mediante expectativa de crescimento futuro.
Esses investimentos são captados em rodadas, conhecidas de acordo com a ordem em que acontecem. A primeira rodada de investimento é chamada de Seed. É quando a iniciativa capta aquele que é conhecido como capital semente e que vai ajudar a tirar a ideia do papel – ou do PowerPoint.
Conforme a startup vai validando sua hipótese de negócio, outras rodadas acontecem. As captações de investimentos subsequentes são conhecidas por Series A, Series B, Series C e assim por diante.
A cada uma dessas rodadas os fundadores vão cedendo participação na startup – entre 10 a 30% por rodada – em troca de recursos para fazê-la crescer. Os investidores, que terminam a fase de captação com até 80% da empresa, apostam no modelo de negócios e acreditam que podem reaver o investimento feito de duas maneiras. Uma delas, mantendo sua participação no negócio, ao longo do tempo a partir da geração de fluxo de caixa futuro. Outra, que acaba sendo mais corriqueira, é por meio da venda de sua parte para outros investidores ou para uma grande companhia que se interesse pela iniciativa.
O resultado é que, ao término das rodadas as plataformas pertencem a diversos conglomerados e fundos de investimento. Não bastasse isso, essa difusão da propriedade demanda distribuição do faturamento para pagar os investimentos feitos.
O que sobra para as pessoas que fazem a plataforma funcionar é muito pouco. E isso vale para as mais diversas iniciativas, sejam elas de mobilidade urbana ou de streaming de música. Isso cria uma distorção muito grande na distribuição da riqueza e na tomada de decisão. E é para endereçar essa questão que surgem as plataformas cooperativas.
Plataforma de propriedade compartilhada
Uma plataforma cooperativa, ou seja, de propriedade compartilhada, tem a mesma função que uma da gig economy. Ou seja, facilitar o acesso, por parte dos consumidores, a bens e serviços ao mesmo tempo em que, para os produtores e fornecedores, geram oportunidades de trabalho.
A grande diferença está na forma como a iniciativa se organiza e busca criar valor. Como vimos antes, uma plataforma criada a partir de uma startup convencional é, em outros termos, um mecanismo para extrair valor da sociedade e, com isso, gerar riqueza para um grupo restrito de founders e, principalmente, investidores.
As plataformas de propriedade compartilhada não visam o chamado “exit”, ou saída, que é quando o founder cede completamente sua participação em troca de volumosas somas de dinheiro. Pelo contrário, no modelo cooperativista de plataforma aos founders originais somam-se cada vez mais cooperados para compartilhar a propriedade da iniciativa.
Consequentemente, cada um desses cooperados tem direito a um voto e pode, assim, ajudar a determinar os caminhos pelos quais a plataforma vai seguir. Com isso, uma plataforma cooperativa de streaming de música como a Ampled, por exemplo, conta com cada vez mais artistas em seu quadro de cooperados. São eles os verdadeiros donos do negócio e, dessa forma, conseguem obter remuneração mais justa ao seu trabalho.
Principais diferenças entre plataformas proprietária e cooperativa
Apesar de terem uma origem similar no que diz respeito à amplificação do alcance dos serviços prestados, plataformas cooperativa e privadas têm diferenças muito significativas. Vamos olhar mais de perto:
Propriedade de investidores Propriedade compartilhada Valor Extraída dos usuários Capturado pelos usuários Recompensas econômicas Concentradas em poucos Compartilhadas por muitos Motivação Maximização financeira Prestação de serviço aos membros Modelo de receita Taxa de plataforma Contribuição comum Meta Saída a partir de um transação de valores Independência sustentável Tomada de decisão Autocrática Democrática Mentalidade Competição Cooperação Cultura Individualidade Coletividade
Apesar de gerarem valor para uma quantidade maior de pessoas e não terem os aspectos predatórios das plataformas privadas, as plataformas de propriedade compartilhada ainda não são muito difundidas.
Vamos entender os motivos.
Por que não vemos muitas plataformas cooperativas
Em artigo, o fundador da Start.coop e conselheiro do Instituto de Desenvolvimento Cooperativo, Greg Brodsky, listou três motivos sobre por que não vemos tantas plataformas cooperativas sendo criadas. Os motivos, apontados são: muitas pessoas não entendem o modelo cooperativo; o modelo tradicional é relativamente mais simples; o acesso ao capital é mais difícil para empreendedores de cooperativas.
Vamos aprofundar um pouco mais em cada um desses motivos.
Modelo cooperativista é difícil de entender
De acordo com Brodsky, 78% dos consumidores se dizem propensos a consumir de cooperativas. No entanto, apenas 11% sabem definir o que é uma cooperativa. Ele acredita ser este um dos motivos pelos quais as maiores cooperativas do mundo não usam a palavra “cooperativa” de maneira associada aos nomes de seus negócios. Embora ele afirme que as impressões equivocadas em torno da palavra cooperativa estejam diminuindo, ele tem preferido usar termos equivalentes para definir plataformas cooperativas, como: propriedade compartilhada, mútua ou distribuída.
O modelo tradicional é mais simples
Os modelos tradicionais de negócios contam com mais disponibilidade de informações e mais clareza nos modelos jurídicos e regulamentações disponíveis. Isso porque todo o ecossistema de suporte a negócios cooperativistas ainda está nascendo. Certamente, aposta Brodsky, este é um fator que dificulta o surgimento de plataformas cooperativas.
Acesso dificultado ao capital
Da mesma maneira que o ecossistema ainda está em desenvolvimento, não existem ainda linhas de financiamento específicas. Voltando ao primeiro ponto, muitos investidores não entendem o que é cooperativismo ou não há legislação que preveja alocação de capital em cooperativas.
Considerações finais
Dentre os desafios para estimular o surgimento de plataformas de propriedade compartilhada está difundir cada vez mais tanto os seus conceitos quanto o do movimento cooperativista em si. Este é um dos pontos de partida para a construção de um ecossistema cooperativista cada vez mais robusto e rico.
Consequentemente, é a forma de atrair atenção de investidores, entidades bancárias e dos legisladores, assim como de toda a sociedade, para o modelo de plataformas cooperativas. Este é um movimento urgente de ser feito, pois os modelos baseados na gig economy têm se mostrado frágeis em diversos aspectos por distorcerem as relações econômicas e de trabalho. Justamente tudo aquilo que o cooperativismo visa preservar.