O crescimento do mercado de inteligência artificial é o grande acontecimento da década, tanto em caráter de avanço tecnológico quanto de impacto econômico. Dados do Statista estimam que, em 2024, o setor de IA deve atingir uma valor de mercado superior a US$ 180 bilhões. Mas esse é só o começo: até 2030, esse valor deve chegar a mais de US$ 820 bilhões.
Essa expectativa causou muitas movimentações no setor de tecnologia. A Nvidia, fabricante de processadores requisitados para as ferramentas de IA, viu seu valor de mercado crescer a ponto de se tornar a companhia mais valiosa do mundo por algumas semanas. O primeiro lugar voltou a ser da Microsoft, que também aposta suas fichas na inteligência artificial.
Nessa mesma seara, a OpenAI, responsável pelo desenvolvimento do ChatGPT, chegou ao valuation de US$ 80 bilhões. Outras gigantes da tecnologia, como Google, Amazon e Facebook também estão investindo no setor de IA generativa. Diante disso, o poder sobre essa tecnologia revolucionária tem ficado concentrado nas mãos das big techs.
Desenvolver inteligência artificial é caro, então quem tem dinheiro para investir sai na frente. No entanto, essa concentração de mercado também é muito perigosa, ao manter uma quantidade sem precedentes de dados – e, portanto, de poder – em posse de apenas algumas companhias.
Enfrentar esse problema não é tarefa fácil, mas a questão não poderia estar no desenvolvimento de um modelo de inteligência artificial cooperativista, respeitando princípios éticos e com propriedade compartilhada? Vamos, então, discutir as razões em prol de um modelo de inteligência artificial cooperativista.
Os diferenciais de uma inteligência artificial cooperativista
A evolução da inteligência artificial traz consigo uma série de dilemas. A resposta para encará-los pode ser justamente a criação de uma inteligência artificial cooperativista. Estes são alguns pontos para refletir, confira!
Concentração tecnológica
Modelos de inteligência artificial generativa precisam de muitos dados e demandam muito dinheiro. “Algumas grandes empresas de tecnologia estão prontas para consolidar o poder por meio da IA, em vez de promover sua democratização”, diz Sarah Myers West, diretora-executiva do AI Now Institute, ao MIT Technology Review.
Como consequência, a tecnologia revolucionária caminha para se tornar um oligopólio dominado por big techs. O resultado disso é que os dados também vão ficando (ainda mais) concentrados dentro dessas grandes corporações. Com essas informações, elas se colocam em posição privilegiada para treinar seus modelos e melhorar suas ferramentas de IA, em um ciclo vicioso.
Aplicando princípios do cooperativismo de plataforma, como a transparência e a portabilidade de dados, um modelo de inteligência artificial cooperativista pode propor uma solução mais descentralizada para o avanço da tecnologia.
Ademais, esse pode ser um caminho para evitar que todo o poder – econômico e geopolítico – decorrente da inteligência artificial generativa fique sob posse de alguns poucos países. Em um mundo globalizado, um modelo de IA cooperativista consegue ser uma aliado para distribuir os bônus, e não somente o ônus, dos avanços tecnológicos inevitáveis.
Trato adequado de dados
Uma das grandes controvérsias no desenvolvimento da inteligência artificial tem a ver com a coleta e o uso dos dados necessários para o treinamento dos modelos. Artistas, escritores e produtores de conteúdo digital como um todo buscam caminhos para evitar que suas obras sejam usadas por esses modelos sem consentimento prévio e remuneração adequada.
A Adobe, por exemplo, precisou se pronunciar após uma mudança nos termos de uso que abria a possibilidade de a empresa usar artes dos usuários para treinar IAs. Nessa briga, surgiu até mesmo um algoritmo que tem o objetivo de envenenar imagens com o objetivo de confundir os modelos de inteligência artificial.
A OpenAI, por exemplo, enfrenta suspeitas de estar usando vídeos do YouTube para treinar o Sora, uma ferramenta de IA para criação de vídeos. A atitude vai contra as diretrizes do YouTube. Se nem o Google está a salvo de ter dados coletados de forma irregular, de que forma as pessoas comuns podem se proteger?
Por meio de um modelo de inteligência artificial cooperativista, os artistas e produtores de conteúdo podem ser donos da plataforma que usa suas obras para treinamento. Com isso, eles têm propriedade e recebem adequadamente pelo trabalho e disponibilização do material. Além disso, por meio de uma boa governança que respeite os princípios do cooperativismo, é possível garantir o uso ético dos dados concedidos.
Desigualdade econômica
A evolução tecnológica nem sempre se traduz em melhoria para o bem-estar das pessoas e dos trabalhadores, ainda mais nos países em desenvolvimento. Os economistas Daron Acemoglu e Simon Johnson, professores do MIT, alertam para o risco de que a inteligência artificial pode acabar contribuindo para aumentar a desigualdade.
Esse fenômeno acontece tanto entre pessoas quanto entre nações. Kristalina Georgieva, diretora do Fundo Monetário Internacional, também tem o mesmo temor. “Na maioria dos cenários, a inteligência artificial vai piorar a desigualdade”, afirmou à BBC.
Primeiramente, como as grandes empresas que dominam a IA já são de países ricos, a tecnologia promoverá uma transferência de riqueza para esses locais. Além disso, trabalhos que exigem menor qualificação correm maiores riscos de serem automatizados com a IA, o que acirra ainda mais esse fenômeno.
Um modelo de inteligência artificial cooperativista teria as armas para ao menos reduzir esses impactos e empregar a inteligência artificial generativa não só para gerar inovação, mas também empregá-la como um motor de desenvolvimento econômico e distribuição de riqueza. A tecnologia vai, inevitavelmente, gerar riqueza.
O importante agora é pensar em caminhos para que essa riqueza não gere apenas acúmulo de capital e aumente a desigualdade econômica. Que tal o cooperativismo?
Precarização e microtrabalho
As preocupações sobre o impacto da IA no trabalho não são novidade. “O setor privado está obcecado pela automação – uma automação que substitui pessoas por máquinas, que destruirá empregos e reduzirá as oportunidades para algumas pessoas, empurrando-as para a parte mais baixa do mercado de trabalho”, disse o professor Simon Johnson.
Mas além desse aspecto, há um outro prisma preocupante em relação à Inteligência Artificial e a precarização: o microtrabalho. Os modelos de inteligência artificial precisam de treinamento. Para isso, as big techs se aproveitam de trabalhadores precarizados de países pobres que treinam os sistemas muitas vezes em troca de valores que sequer chegam a um salário mínimo.
Esses trabalhadores são essenciais para os avanços da inteligência artificial. Nos bastidores, a IA requer muito trabalho manual a fim de estabelecer padrões e coletar dados, de forma a treinar os sistemas. No Brasil, de acordo com a pesquisa Microtrabalho no Brasil: Quem são os trabalhadores por trás da inteligência artificial, os operários de dados ganham R$ 583,71 por mês, em média.
O pesquisador Phil Jones escreve no livro Work Without the Worker: Labour in the Age of Platform Capitalism que microtrabalho é a soma dos mesmos processos de crescimento lento, proletarização e declínio da demanda de trabalho que infla a informalidade. O cooperativismo também pode apresentar alternativas diante desse cenário.
Diante disso, um modelo de inteligência artificial cooperativista pode oferecer alternativas mais justas para que os treinadores de IA não atuem de forma precarizada. Devido ao papel fundamental que cumprem em prol do desenvolvimento da tecnologia, esses trabalhadores poderiam se associar a cooperativas de trabalho que prestam serviços à plataforma ou até mesmo integrar a plataforma cooperativista de IA em si.
CosyAI propõe um framework de Inteligência Artificial cooperativista
Já existe um projeto para o desenvolvimento de um modelo de inteligência artificial cooperativista. Trata-se do Cosy AI, que propõe um framework cooperativo que permite a propriedade compartilhada da IA generativa.
Desenvolvido a partir das ideias propostas pelo cooperativismo de plataforma, o Cosy AI é fruto da intercooperação entre uma série de entidades cooperativistas europeias. A Cosy Tools (antiga Platform21), uma cooperativa de tecnologia sediada na Alemanha, é a líder do projeto. Os objetivos da iniciativa são:
- Promoção de IA nas cooperativas: o Cosy AI oferece uma lista de aplicações de inteligência artificial pré-treinadas prezando pela segurança de dados.
- Modelos de linguagem cooperativistas: o projeto almeja fazer ajustes finos em modelos de IA a fim de construir plataformas especializadas especificamente para atender as necessidades e propósitos das cooperativas em condições acessíveis, promovendo a inclusão econômica.
- Obtenção de dados: o diferencial do Cosy AI será o acesso a dados e informações de cooperativas e comunidades. A ideia é reunir esse conhecimento para criar bancos de dados gerenciados em uma estrutura cooperativista e confiável.
- Renda mínima: a iniciativa também quer proporcionar receita para as pessoas que contribuem para o desenvolvimento de um mundo mais cooperativo. O plano é cobrar assinaturas das ferramentas especializadas e criar um fundo de renda básica com as sobras.
Conclusão: a jornada pela Inteligência Artificial Cooperativista
Diante das possibilidades proporcionadas pela tecnologia, as cooperativas já estão aderindo às ferramentas de inteligência artificial. A tecnologia, afinal de contas, automatiza processos, ajuda a combater fraudes, acelera a análise de dados e contribui para otimizar o atendimento.
Ou seja: o setor cooperativista reconhece a importância da inteligência artificial para os negócios. Inovação e competitividade andam lado a lado. Nesse primeiro momento, é inevitável recorrer às big techs que dominam a tecnologia para ter acesso às ferramentas.
No entanto, é necessário também pensar no futuro. “A IA veio para ficar e atuará em todos os setores. Não interessa a função, todo mundo sofrerá a influência dela”, disse Alessandro Faria em sua apresentação no Cooptech Crédito 2024.
A tecnologia será cada vez mais relevante com o passar dos anos. Desde já, no entanto, precisamos pensar em como enfrentar os dilemas e problemas tangentes ao desenvolvimento da inteligência artificial. Concentração de riqueza, governança de dados, precarização do trabalho, sustentabilidade ambiental – eis alguns dos elementos que demandam atenção.
O cooperativismo é um movimento que reúne 1 bilhão de pessoas no mundo todo, segundo a 12ª edição do World Cooperative Monitor, produzido pela Aliança Cooperativa Internacional. Na busca pela autonomia, soberania de dados e inovação ética, que tal pensarmos a sério em um modelo de inteligência artificial cooperativista em prol de um futuro mais justo?