Conheça o St. Pauli, a primeira cooperativa de futebol profissional

Há mais em comum entre futebol e cooperativismo do que você pode imaginar. E não estamos falando da cooperação entre jogadores para construir uma ‘tabelinha’ ou qualquer outra forma de trabalho coletivo dentro das quatro linhas. O assunto é gestão de clubes – e o novo passo dado pelo St. Pauli, na Alemanha.

O modelo associativo, no qual sócios do clube participam da gestão através de votação em eleições, é comum em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil – esse modelo era basicamente exclusivo no país até 2021, quando foi aprovada a lei que regulamenta as Sociedades Anônimas do Futebol, as SAFs.

Há casos de destaque em participação comunitária, como o inglês AFC Wimbledon. Fundado em 2002, o clube é controlado por torcedores através de um fundo sem fins lucrativos. Alguns princípios do cooperativismo marcam sua gestão, como adesão voluntária e livre, um voto por membro e interesse pela comunidade. Entretanto, a equipe inglesa não é registrada oficialmente como uma cooperativa, assim como nenhum outro time de futebol profissional no mundo era.

Mas isso mudou em novembro de 2024. O St. Pauli, um clube alemão tradicional e atual participante da primeira divisão local, lançou oficialmente sua cooperativa. O movimento pode ser um passo decisivo para o avanço do cooperativismo como forma de gestão no futebol.

Saiba por que o St. Pauli escolheu o caminho da cooperação e o que isso significa para o mundo do futebol. Boa leitura!

A história do St. Pauli

Foto: FC St.Pauli

O St. Pauli é sediado em um distrito homônimo na cidade de Hamburgo, no norte da Alemanha. O clube foi fundado oficialmente em 1910, mas seus futuros fundadores já se reuniam para ‘bater uma bola’ desde 1907. O futebol é o carro-chefe do clube poliesportivo, que também tem departamentos de rugby, beisebol, tênis de mesa e outras nove modalidades.

Sem grandes glórias em seus primeiros anos, o St. Pauli formou seu “time maravilha” em 1947, pouco após a Segunda Guerra Mundial. O clube conquistou o campeonato da cidade naquele ano, superando o histórico rival Hamburgo, e disputou edições da primeira divisão nacional ao longo das décadas de 1940 e 1950. Entretanto, o futebol da Alemanha Ocidental avançou em direção à profissionalização e a uma liga unificada, culminando na criação da Bundesliga, em 1963, sem o St. Pauli.

O clube enfim conseguiu chegar à elite em 1977, mas logo foi rebaixado de volta à segunda divisão. A queda provou-se o princípio de uma sucessão de anos difíceis. À beira da falência, o St. Pauli teve sua licença profissional revogada em 1979, sendo relegado forçadamente à terceira divisão. 

A equipe eventualmente se recuperou e voltou a ficar elegível à Bundesliga 2 em 1984. Para piorar o momento, o contraste com o rival da cidade era enorme. O Hamburgo, historicamente o clube mais vitorioso de sua região, atravessava anos dourados e se sagrou campeão europeu em 1983.

Futebol e comunidade

Em mais de 70 anos de história, estava claro que o St. Pauli não era um clube de destaque por seus feitos esportivos. Quase sempre à sombra do Hamburgo, a equipe tinha uma coisa especial: sua comunidade. E ela passou a tomar nova forma durante o ressurgimento nos anos 1980.

O St. Pauli se tornou “cult”. Localizado em região com vida noturna ativa em Hamburgo, o clube passou a atrair público alternativo, punk e progressista. Os novos torcedores se apaixonaram pela equipe e adotaram a caveira com ossos cruzados como um símbolo, dando origem ao apelido de “piratas”.

Foto: Andreas Schwarzkopf

A instituição abraçou a comunidade e incorporou suas características e crenças. O St. Pauli se tornou o primeiro clube alemão a banir atividades e cartazes com mensagens extremistas. Também foi o primeiro clube das divisões principais do país a ter uma dirigente mulher, e já foi gerido por um presidente abertamente gay: Corny Littmann, entre 2002 e 2010.

Pincípios do St. Pauli

Em 2009, o St. Pauli foi mais uma vez pioneiro na Alemanha ao incorporar princípios fundamentais à sua forma de gestão. No documento, a instituição reconhece seu papel social. Confira os cinco primeiros princípios:

  • O FC St. Pauli, em sua totalidade de membros, funcionários, torcedores e voluntários, faz parte da comunidade local e, como tal, é afetado direta e indiretamente pelas mudanças sociais nas esferas política, cultural e social.
  • O FC St. Pauli aceita essa responsabilidade social e promove os interesses de seus membros, funcionários, torcedores e voluntários para além da esfera esportiva.
  • O FC St. Pauli é um clube enraizado em um bairro da cidade. Sua identidade deve-se a isso, e o clube tem uma responsabilidade social e política para com o bairro e as pessoas que nele vivem.
  • O FC St. Pauli transmite um modo de vida e é um símbolo de autenticidade esportiva. Isso permite que as pessoas se identifiquem com o clube, independentemente do sucesso que ele possa alcançar em campo. Características marcantes dessa oportunidade de identificação devem ser nutridas e protegidas.
  • A tolerância e o respeito nas nossas interações mútuas são pilares importantes da filosofia do St. Pauli.

Por que o St. Pauli escolheu a cooperação

Nota-se, especialmente no terceiro princípio, que já havia um pouco de cooperativismo enraizado no St. Pauli. Ter o interesse pela comunidade como norteador já era um indicativo de que esse modelo de gestão poderia ser adequado ao time de Hamburgo.

Esportivamente, o St. Pauli estava consolidado como uma equipe de segunda divisão. Após ser rebaixado da Bundesliga em 2011, o time passou 13 anos lutando por um novo acesso. O sonho enfim foi alcançado na temporada 2023/24, com o título da segunda divisão, a mais importante conquista nacional da história da instituição.

Além da exigência esportiva de enfrentar gigantes como Bayern de Munique e Borussia Dortmund com frequência, o acesso à Bundesliga também é desafiador do ponto de vista financeiro. 

O St. Pauli é “pobre” na comparação com os outros times da primeira divisão. A equipe investiu somente 1,8 milhão de euros em reforços nesta temporada, ficando à frente somente do Bochum – que não gastou em contratações na janela de transferências do verão europeu.

Cooperar para competir

Por mais que o St. Pauli se orgulhe de ser um clube diferente dos demais e, em certa medida, uma resistência anticapitalista num meio esportivo cada vez mais mercantilizado, a instituição também sabe que é necessário recursos para se sustentar no futebol profissional. 

Nesse sentido, o St. Pauli encontrou uma alternativa que contempla suas necessidades financeiras e reforça seu caráter popular e democrático: o cooperativismo. O clube lançou oficialmente, em 10 de novembro, a sua cooperativa: a Football Cooperative St. Pauli.

Para tornar-se um cooperado, é necessário comprar o equivalente a ações. Cada uma custa 850 euros, sendo 68 euros dessa quantia destinados à construção de espaços físicos para a cooperativa. Qualquer torcedor ou interessado no St. Pauli pode fazer parte do projeto. Desse modo, a meta do clube é arrecadar 30 milhões de euros.

Modelo de negócios

Ao contrário de modelos tradicionais de clube-empresa, ter mais ações não dá a um indivíduo maior poder de decisão sobre o futuro do clube. O St. Pauli será de fato uma cooperativa, com todos os cooperados tendo poder de voto igual entre si.

Foto: Vincenzo.togni

Após o período de inscrições, que vai até o fim de janeiro, a intenção é que a cooperativa compre ações majoritárias da empresa que gerencia o Millerntor Stadion, a casa do St. Pauli. Assim, o estádio será literalmente de seus torcedores.

O modelo cooperativo é a forma ideal de manter o St. Pauli conectado à comunidade, trazendo a torcida para ainda mais perto da gestão. “É o projeto mais importante para o FC St. Pauli desde a reforma do Millerntor Stadion. Queremos mostrar que não apenas um diferente tipo de futebol é possível, como também um diferente tipo de financiamento”, disse Oke Göttlich, presidente do clube, no lançamento da cooperativa.

“A injeção de novo capital por meio de uma cooperativa é muito mais próxima dos membros do que uma separação do setor de futebol profissional, o envolvimento de investidores ou a venda de direitos de merchandising. A única questão realmente é por que ninguém pensou nisso antes”, explica Göttlich

Espaço para a cooperação no futebol alemão

Era de se imaginar que a Alemanha seria o palco onde o modelo cooperativo ganharia espaço pela primeira vez dentro do futebol profissional europeu. Diferentemente do que ocorre em outras potências do esporte, o país garante, através de regulamentação, que os clubes pertençam aos seus torcedores.

Isso se dá através de regra conhecida como “lei dos 50% + 1”. A legislação criada em 1998 garante que a associação sempre terá, ao menos, 51% das ações do clube. Ou seja, os associados compõem a maioria do quadro e as decisões não podem ser centralizadas em uma única pessoa ou empresa. A medida, afinal, foi tomada para proteger o futebol alemão de investimentos estrangeiros e artificiais.

O Bayer Leverkusen e o Wolfsburg são as duas exceções à regra. Os clubes, fundados por funcionários das empresas Bayer e Volkswagen, respectivamente, contam com aporte financeiro das corporações desde antes da regulamentação, e elas não foram impedidas de prosseguir à frente das equipes. Outro exceção é vista no Hoffenheim. Dietmar Hopp, por investir no clube há mais de 20 anos, recebeu o direito de adquirir 96% de suas ações.

Há, contudo, uma instituição que pratica um ‘drible’ velado à lei: o RB Leipzig, braço alemão do projeto de futebol da Red Bull. A empresa austríaca comprou a licença do clube SSV Markranstädt em 2009, à época na quinta divisão, pôs funcionários como sócios, adquiriu 49% das ações e colocou preços exorbitantes no restante. A identidade visual da equipe, com touros vermelhos no escudo mas sem referência nominal à empresa, também é um ‘drible’ à legislação alemã, que proíbe publicidade nos escudos.

St. Pauli: cooperativismo como disrupção

Por ir contra a cultura do futebol alemão, o RB Leizpig tem a alcunha de “clube mais odiado da Alemanha”. Em partida em setembro contra o St. Pauli, pela Bundesliga, a torcida da equipe de Hamburgo estendeu faixa na qual chamou o clube adversário de “inimigo do futebol”.

Foto: TheSteveGarden

As raras exceções comprovam que, na Alemanha, a regra é um futebol conectado ao torcedor e potencialmente colaborativo. Outra equipe se planeja para dar passos similares ao St. Pauli no futuro.

O Schalke 04, por exemplo, também fundará sua cooperativa. O tradicional clube de Gelsenkirchen atravessa problemas financeiros e esportivos – hoje está na segunda divisão. A fim de arrecadar fundos e reduzir dívidas, o modelo cooperativista foi a melhor saída encontrada, assim como no caso do St. Pauli. Entretanto, apenas os mais de 160 mil sócios do Schalke poderão comprar ações na nova associação. 

Conclusão: o futuro da cooperativa de futebol do St. Pauli

O caso do St. Pauli ainda é uma história em desenvolvimento, mas já dá indícios de que o cooperativismo pode ser uma solução para manter o futebol conectado ao torcedor e viável economicamente. 

O St. Pauli era, provavelmente, o clube mais propício no cenário mais adequado do futebol europeu para a adoção do modelo cooperativista. Vejamos quais serão os próximos passos dessa instituição que sempre é protagonista no esporte alemão, independentemente de resultados dentro dos gramados.

Para saber mais sobre a ligação entre futebol e cooperativismo, incluindo até conexões desses dois campos no Brasil, confira este artigo em que nos aprofundamos no tema!

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Arthur Macedo
Arthur Macedo
Jornalista formado pela Universidade de São Paulo. É apaixonado por esportes, faz tudo enquanto ouve música e sempre que possível está em algum cinema. É redator na Coonecta.